Ainda que a crise sanitária deflagrada pelo coronavírus não tenha se encerrado, já é possível começar a processar a experiência vivida, fazendo-se uma avaliação que permite mudanças de comportamento e investimento no que precisa ser ajustado.
Coordenadora médica da Saúde Populacional do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, Dulce Pereira de Brito, responsável pelos programas corporativos de promoção da saúde, bem-estar e saúde mental da instituição, palestrou, em setembro, no Congresso de Gestão de Pessoas da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Rio Grande do Sul.
Médica clínica geral e intensivista, Dulce rumou para a especialização em promoção da saúde depois de testemunhar, ao longo de anos, a morte de pacientes em estado crítico que poderiam ter se cuidado melhor antes de terem chegado a um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Em entrevista concedida a GZH, por telefone, a professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) ressaltou os sentimentos predominantes desde março de 2020, a importância do resgate dos "feridos" das mais diversas formas, os aprendizados possíveis e o que precisa ser diferente na vida pessoal e profissional, considerando-se todos os personagens envolvidos nesses cenários. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa.
Medo, cansaço, esperança
"Essa pandemia trouxe uma série de incertezas. A gente imaginava que, na era pós-vacinal, as coisas já estariam muito mais tranquilas e voltando à 'normalidade', vamos dizer assim. Mas agora, com a chegada das variantes, especialmente, neste momento, a Delta, acho que se acendeu novamente uma lanterna amarela de incertezas. O que posso dizer é que costumo dividir a pandemia no ano um, 2020, quando, nas nossas pesquisas e investigações, a palavra que predominava era medo. Medo de se contaminar, de contaminar a família, de morrer, de perder o emprego ou alguém querido. Medo, medo, medo. Para este ano, uma palavra que predomina é cansaço, tanto físico quanto mental _ num extremo, se estivermos falando de pessoas trabalhando, estamos falando de burnout, a exaustão total, física e mental. É como se fosse uma bateria que está (com a carga) bem baixinha. No pós-vacina, ou pelo menos agora, no durante, nesse período em que a gente está vacinando cada vez mais e aumentando a porcentagem de pessoas imunizadas, uma palavrinha que começa a aparecer é esperança. E é sensacional. É você conseguir atravessar o mar, começar a enxergar a terra segura lá do outro lado."
Resgate dos feridos
"A gente entende a pandemia como um evento extremo, uma catástrofe, como seria talvez um grande incêndio que dizimou muitas pessoas. Ou um tsunami. E agora, o que veremos nesse pós-vacina? É hora de resgatar os feridos. Sabe depois de uma guerra? É o resgate dos feridos. O que observamos são feridos de toda natureza. Tem pessoas feridas nas suas relações interpessoais. A pandemia foi também a pandemia do divórcio. Perto demais por tempo demais, um intensivão de convivência. A gente perdeu aquilo que dizia assim: 'Não leva problema do trabalho para casa' e 'não leva problema de casa para o trabalho'. Só que agora, como o trabalho invadiu a casa e a casa o trabalho — o teletrabalho —, você não tem limites nítidos. O que é não levar o problema de casa para o trabalho se você está no mesmo lugar? Está fazendo uma reunião no Zoom e o gato passa na frente, a criança chora, a reforma do vizinho... Essas separações a gente achava que dava para fazer, de uma forma até ilusória: separar o trabalho da vida pessoal, se é que isso era possível, porque quando você entra na empresa não deixa sua cabeça na porta, você entra com ela. Era mais fácil separar, agora não mais. Então tem essa questão das relações interpessoais que podem estar muito abaladas."
O lado das sombras x o lado do sol
"Também aumentou muito a violência doméstica, violência de gênero, contra as crianças também. Mas, vamos dizer que, em termos de relações interpessoais, esse é o lado sombrio. Pensando em um parque, um bosque, sempre onde tem sombra tem também sol. Só é possível ver a sombra porque o sol incide sobre a árvore. Tem o lado sombra e tem o lado luz, que é o lado bom das relações interpessoais. Da mesma maneira que muita gente se separou, muita gente se juntou. Tem os casais da pandemia, os bebês da pandemia, as pessoas que fizeram as pazes com a sua casa, com o fogão, e passaram a cozinhar. Quero ver quando a gente vai fazer essa colheita do que sobrou depois desse tsunami ou dessa geada. As coisas precisam ser reconstruídas e restauradas. Tem quem perdeu emprego, renda, teve redução de salário, foi afastado do trabalho. Tem um monte de feridas a serem restauradas. E tem muita coisa no lado luz que vai ser muito legal incorporarmos na nossa vida e levar para sempre. Muitos aprendizados. No começo, era tudo muito instável, mas o ser humano é muito adaptável, e se adaptou. Como é dito e eu concordo, cada um viveu uma pandemia. O número de pessoas que tem no Brasil é o número de pandemias que vivemos. Tem gente que perdeu entes queridos, perdeu mãe, pai, tem quem perdeu mãe e pai, filhos, parentes, amigos próximos. Tem quem está dentro de x metros quadrados, apertado com um monte de gente, e quem está superbem, feliz e adaptado porque está em casa. Do mesmo jeito que existem vários Brasis, existem várias pandemias."
Ativar a compaixão
"Quando acontecer o pós-pandemia, a gente vai precisar, de verdade, ativar o nosso lado humano. Alavancamos muito o lado digital, por necessidade. A gente avançou, aprendeu, caminhou na parte digital, e acho que, nessa mesma intensidade, vai ter que intensificar o lado humano, a compaixão. Vou ter que olhar para o lado, para o meu colega, que voltou a trabalhar comigo, e entender que o que eu vivi não é necessariamente o que ele viveu e que as necessidades dele podem ser completamente diferentes das minhas. Muitas vezes, em uma empresa, uma escola, uma família, pensamos em igualdade: vamos dar tudo para todos. Às vezes, a igualdade, dar tudo para todos, é injusta. Vamos precisar de equidade, que é dar para cada um proporcionalmente a sua necessidade. Há líderes que terão mais tempo para conversar, ouvir, falar. Percebo muita gente com medo de voltar para a empresa e se contaminar. Vejo pessoas que, quando tem uma ou duas reuniões presenciais por semana, se incomodam com o barulho, todo mundo falando, ao mesmo tempo em que tem gente sofrendo pela ausência desse barulho e de todo mundo falando. Talvez as empresas não possam ter regras iguais para todo mundo, mas flexibilidade. Outra palavra muito importante é compaixão: olhar e dar a cada um segundo a sua necessidade."
Empresas terão que se adaptar
"Não vai dar para ser igual. Sabe por quê? Não dá para apagar tudo o que mudou. Acho que existirá uma força natural de querer que as coisas voltem a ser como eram, principalmente, em termos de processos de trabalho. Sabe aquela loucura de São Paulo, todo mundo pegando o metrô? Isso não faz sentido. Tem forças que vão querer que a gente pegue uma cápsula e volte ao passado. Em empresas já com esquema híbrido, tem gente com reunião o dia inteiro por Zoom. Aí você vai para o trabalho e passa o dia todo em reunião pelo computador com os colegas de trabalho que estão em casa porque é o dia de eles estarem em casa. Será que isso faz sentido? As empresas terão um desafio importante para vencer essas forças naturais, talvez da inércia mesmo, para fazer diferente aquilo que sempre foi feito daquele jeito. Pensa numa pasta de dente. Imagina que você apertou e saiu toda a pasta. E agora você resolveu que tem que colocar toda a pasta de volta lá dentro. Vai dar? É como se o recipiente fosse a empresa. As paredes são as mesmas, a bisnaga é a mesma, materialmente. As pessoas são a pasta que você pôs para fora e ficaram um ano e meio em casa. Agora a gente vai fazer o "back to work", botar todo mundo de volta. Terá que haver uma reacomodação, não vai dar para ser igual. E não é só por uma questão sanitária, mas comportamental.
Tem coisas de que não precisamos mais. Será uma curva de aprendizagem. Vamos errar bastante até encontrar um novo jeito de fazer, que vai ser mudado, mudado e mudado. A única certeza que temos é que tudo vai mudar. Vai doer. Feridos sofrerão mais, mas quem não está ferido, quem está muito bem como está, ao voltar, pode se machucar. Há que se ter flexibilidade, empatia, compaixão. Teremos que ter líderes compassivos, que, para além de reconhecer que cada um viveu uma pandemia. Tem gente que está sofrendo muito, tem gente que está bem, mas teremos que fazer algo para reacomodar as pessoas, restaurar as feridas, dando a cada um o que eles precisam, na medida em que precisam — aí volto à equidade."
Já é hora de pedir ajuda
"O Brasil é o país mais ansioso das Américas e um dos mais ansiosos do mundo, assim como também temos uma prevalência de depressão muito grande. Existe uma estimativa de que o transtorno de estresse pós-traumático vai aumentar muito — quanto é esse muito, não sabemos ainda, só o futuro dirá. São pessoas que viverão, no pós-pandemia, sintomas de estresse pós-traumático, como flashes. Se você fechar os olhos, vai lembrar o que viu na TV sobre Manaus e a falta de oxigênio. Imagine quem viveu aquilo. Uma coisa é você assistir pela TV, outra é ser testemunha ocular porque foi vítima direta, ou algum familiar, ou ente próximo, ou porque você era um profissional da linha de frente que vivenciou aquilo. Imagine a chance de essas pessoas adoecerem tal qual um bombeiro de Brumadinho, de Mariana, do 11 de Setembro, da Boate Kiss ou da Segunda Guerra Mundial. Existem pessoas que não conseguem se recuperar disso com facilidade e vão precisar de auxílio."
"A gente diz o seguinte em saúde mental: da mesma maneira que você pode ter uma alta carga viral, pode ter também uma alta carga emocional. A Organização Mundial da Saúde fala que o contágio emocional é maior do que o contágio viral. Isto é, o fato de você ter vivido uma perda — pessoal, financeira, da liberdade — pode deixar marcas muito difíceis de serem apagadas. Nosso cérebro é muito danado. Tem um autor que diz que as emoções negativas, como a tristeza, o choro, a dor, o sofrimento, são como velcro. As emoções negativas do que você passou no dia se fixam na sua memória e, à noite, quando você dorme, o seu cérebro vai fazer uma edição de tudo o que aconteceu e vai registrar, salvar, muito mais as emoções negativas do que as positivas. Diferentemente das negativas, que grudam como velcro, as positivas escorregam, deslizam, como se fossem teflon, antiaderentes. Não se fixam tanto quanto. Como tivemos muito mais emoções negativas do que positivas, tem pessoas que sairão dessa sofrendo muito, seja por estresse pós-traumático, seja por transtorno de pânico, que já está aumentando muito nos consultórios, seja por ansiedade generalizada ou depressão."
O ganho de resistência
"Por outro lado, tem uma coisa belíssima que é o quanto algumas pessoas ganharam de resistência, resiliência. O quanto as pessoas cresceram. Tudo o que fazemos no Einstein, com as nossas iniciativas, é para transformar esse risco de transtorno de estresse pós-traumático em crescimento pós-traumático. O que eu aprendi com isso? Essa é uma hora da verdade pela qual todo mundo, em algum momento, vai ter que passar. Na frente do espelho, olhar para si, fazer uma viagem para dentro de si mesmo e se perguntar: quem fui eu na pandemia? Que nota eu me dou? Que nota eu dou para a forma como lidei com essas adversidades, com essa polarização, com a escassez? Fui a pessoa que gostaria de ter sido? Quão solidário eu fui? Quanto consegui ouvir sem impor a minha fala? Temos vários aprendizados aí. Tem gente que saiu muito forte."
Cessar, continuar, começar
"É uma grande oportunidade para investir naquilo que nos falta. Me faltou paciência? Compreensão? Empatia? Estou com problemas de comunicação? Estou tendo uma comunicação muito violenta? O que me falta? Investir no que me falta, desinvestir daquilo que não deu certo, deixar de fazer coisas. E acho que, por outro lado, investir naquilo em que eu fui muito bem. Usaria ali a regrinha dos três Cs: o que eu quero cessar, o que eu quero continuar, o que eu quero começar. É um ótimo direcionador para seguir depois desse balanço, dessa autoanálise. Já é hora de fazer isso, temos um bom saldo. Se pensarmos que as empresas fazem os seus balanços anuais e já estamos indo para quase dois anos de pandemia... Poderíamos estar melhores agora em 2021, e acho que a maioria já está, mas há muito o que melhorar ainda."
A empatia como direcionador
"Fala-se muito na expressão, em inglês, 'go back to work' (voltar ao trabalho). Falo que tem o 'go back to you', voltar para você, para dentro de você. De que aquisições preciso como pessoa, ser humano? Na pandemia, você comprou tijolo e cimento para construir mais um cômodo na sua casa? Comprou uma televisão? Você fez investimentos materiais. O convite agora é: qual é o investimento pessoal que você precisa fazer para sair daqui com mais riqueza psicológica, mais fibra psicológica, mais grandeza? Que valores, virtudes e sabedoria eu busco? É isso. Não é sobre o que eu tenho. Agora é sobre quem eu sou. Essa pandemia nos mostrou o quanto somos interdependentes, o quanto o outro faz falta. Graças a Deus, a pandemia não vai nos tirar a capacidade de nos relacionarmos, nos abraçarmos, nos beijarmos. Tudo isso vai voltar. Mas dá para ser melhor. O (escritor) Ailton Krenak fala uma coisa muito legal: se a gente não mudar a relação com a gente mesmo, se não mudar a relação com o outro e com o planeta, a natureza, de nada terão valido todas essas mortes. Se a gente usar essa competência fantástica e eminentemente humana que é a compaixão, a gente vai saber fazer o certo. A empatia é um grande direcionador."
Enxergar além de nós mesmos
"Acho que sairemos muito melhores de tudo isso. Eu espero. Há que se ter esperança. E há de se divulgar, falar muito para as pessoas refletirem mesmo e agirem. Não basta olhar o Pantanal queimando e sofrer com isso. Há de se fazer algo. Chegar para o colega e perguntar: 'Cara, como eu posso te ajudar? Tô percebendo que você não está legal'. Às vezes, é só bater um papo, às vezes, é só ouvir. Mas como é difícil ouvir hoje em dia, né? A gente não tem mais paciência para ouvir ninguém e também não tem muito interesse. Temos que reaprender essas habilidades humanas para tornar o ambiente mais saudável, seguro e agradável para todos nós. Que os nossos olhos enxerguem para além de nós mesmos."