
Quando Brenda Cardoso Gil começou a correr na rua, em Porto Alegre, o objetivo era só melhorar o condicionamento cardiorrespiratório para performar melhor no crossfit, que já praticava.
Mas a paixão pelas passadas foi tão grande que a advogada de 27 anos logo se juntou a uma equipe de corrida, com profissionais que organizaram sua planilha de treinos e descansos, já pensando na preparação para uma meia maratona.
Tudo ia muito bem: Brenda evoluía rápido e percebia resultados positivos no corpo e na mente, sentindo-se mais disciplinada e autoconsciente. Até que, tomada pela empolgação, exagerou na dose.
Começou a treinar para além do que havia planejado com seus professores e correu a meia-maratona já com uma fratura por estresse na tíbia — ela relata que o desconforto ainda era suportável nesse momento.
"Fui direto para o hospital"
Depois do evento, ao invés de reduzir a rotina de atividade física, a advogada continuou correndo por mais tempo e com mais intensidade que o ideal, e não diminuiu o esforço no crossfit. O resultado foi uma nova fratura por estresse na fíbula e um agravamento da outra fratura, na tíbia.
— Foi em um treino longo de sábado, na Orla, que a coisa ficou feia, não conseguia mais tocar o pé no chão, a dor era insuportável. Eu vinha de uma semana em que tinha feito bastante crossfit e tiros de corrida muito fortes. Fui direto para o hospital e, na ressonância, apareceram as duas fraturas — relembra.
Brenda não precisou de cirurgia, mas teve que parar com as atividades por cerca de um mês e tem feito fisioterapia desde então. A fisioterapeuta Paola Costa, que atende a advogada na Sogipa através da Nexos Fisioterapia, explica o caso:
— A fratura por estresse dá sinais antes de acontecer, como a famosa canelite, a dor na canela. O caso de Brenda é um pouco fora da curva porque ela consegue treinar superbem, é forte, conseguiu continuar correndo mesmo pós a primeira fratura porque a musculatura estava forte. Mas o que houve foi realmente um excesso. Ela foi aumentando o volume de corrida e de treinos de força até que seu corpo não aguentou mais.

A diferença está na dose
Exercitar-se é muito melhor para a saúde do que ser sedentário, não há dúvida, mas médicos e especialistas em movimento humano têm alertado para os perigos do hábito de se exercitar de forma intensa ou exagerada e sem orientação profissional, algo que se acentuou muito desde a pandemia.
Não raramente isso é feito seguindo treinos propostos por vídeos nas redes sociais, que, embora sejam fonte de inspiração, não são criados pensando nas particularidades e limitações de cada praticante. O ortopedista e traumatologista Eduardo Müller Ávila, que atua no Hospital Mãe de Deus e no Centro de Ortopedia do Esporte, afirma:
— O fato de haver bastante gente produzindo conteúdo de atividade física nas redes reflete uma demanda existente de pessoas que procuram um estilo de vida saudável, o que é superimportante. Mas é necessário cuidado, pois quando não há uma supervisão e o treinamento não é individualizado, há risco de se lesionar.
Você vê algumas pessoas dizendo 'Se não doer, não está funcionando' ou 'Se não tiver sofrimento, não vai ter resultado', mas muitas vezes esse desconforto já é sinal de lesão
EDUARDO MÜLLER ÁVILA
Ortopedista e traumatologista do Hospital Mãe de Deus e do Centro de Ortopedia do Esporte
No caso de Brenda, que é paciente de Ávila, o que pode ter ocorrido é um descompasso nas adaptações do seu corpo, observa o médico:
— A parte cardiovascular tem um ritmo de adaptação enquanto a musculatura, os ossos e os tendões têm outro, demoram mais tempo para se adaptar. Então, às vezes atividades com impacto acabam levando a fraturas por estresse em pessoas que estão, teoricamente, bem condicionadas. É sinal de que a parte óssea ou muscular não acompanhou esse condicionamento.
Erros de principiantes
Nas redes sociais, não é difícil esbarrar em vídeos no estilo "Como ficar irreconhecível em um mês", "Ao invés de treinos de uma hora, faça esse de 12 minutos" ou "Se você é homem com mais de 40 anos, faça essa série de abdominais". O feed do Instagram pode ser uma grande fonte de motivação para largar o sedentarismo, mas é preciso cautela e consciência de que o exercício que pode dar certo para uma pessoa pode acabar lesionando outra.
— Nessa promessa de treinos curtos ao invés de uma hora, por exemplo, ocorre uma atividade absurdamente intensa e que dificilmente alguém que não é muito bem condicionado conseguirá fazer bem-feita. Aí, a chance de se lesionar é muito maior — afirma Ávila.
Segundo o médico, que tem mais de 20 anos de experiência atendendo em consultório, os praticantes inexperientes são os que mais têm lesões relacionadas a esporte. Entre os motivos estão a progressão inadequada de cargas e intensidade e a falta de descanso. Na euforia de conseguirem ter o hábito de se exercitar, fazem mais do que o corpo aguenta e pecam ao não deixá-lo se recuperar entre um treino e outro:
— Existem recomendações genéricas de que seria razoável deixar cerca de 48 horas de recuperação para grupos musculares menores e 72 horas para os maiores, mas varia muito de pessoa para pessoa, conforme o tipo de atividade que está praticando, sua idade, seu histórico esportivo e de lesões.
Dor pode já ser sinal de lesão
A falta de conhecimento do próprio corpo e seus limites influencia as lesões entre os praticantes recém-chegados. Isso porque, ao passo que atletas experientes já sabem quais são suas limitações, quem está começando tem mais dificuldade para diferenciar a dor tolerável e normal da dor que sinaliza um excesso, um risco de lesão.
— Você vê algumas pessoas dizendo "Se não doer, não está funcionando" ou "Se não tiver sofrimento, não vai ter resultado", mas muitas vezes esse desconforto já é sinal de lesão. A tolerância à dor é algo que varia muito de um para outro. A pessoa aprende se conhecendo aos poucos — afirma o médico.
O educador físico Jerri Luiz Ribeiro, professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS, explica que cada indivíduo tem um nível de capacidade para suportar determinado exercício, o que tem a ver com suas características biológicas e seu histórico com exercícios, se já foi praticante ou não. São informações que devem ser levadas em conta para fazer um planejamento de treinamento, afirma Ribeiro:
— Não existe uma fórmula específica para todo mundo. Cada indivíduo terá a sua periodização específica porque cada pessoa tem um nível de capacidade de suportar o exercício. Dentro do que chamamos de macrociclo, que pode ter cerca de seis meses de treinamento, por exemplo, são distribuídas cargas e é planejado o aumento gradual delas, com períodos de descanso entre os treinos de cada grupo muscular adequados para que a pessoa tenha melhor adaptação sem gerar lesões ou qualquer outro problema de saúde.
Como se exercitar com segurança
Veja orientações do ortopedista e traumatologista Eduardo Müller Ávila e do educador físico Jerri Luiz Ribeiro
- Planeje o treinamento, a frequência da atividade e a progressão de cargas levando em consideração características individuais, preferencialmente com orientação profissional
- Tenha consistência no treinamento: foque no longo prazo ao invés de resultados imediatos
- Mantenha uma boa hidratação, bebendo água antes, durante e depois da atividade física
- Informe-se sobre a ingestão adequada de proteínas, a matéria-prima para a construção de músculos e para a saúde de ossos e tendões
- Tenha sono de qualidade e respeite os dias de descanso para a recuperação da musculatura.
- Consulte um profissional caso esteja sentindo cansaço constante ou piora no desempenho
Quando o problema é ampliado
O exercício adequado pode ser um tratamento recomendável para quase todas as condições ortopédicas. Por outro lado, o exercício malfeito pode piorar qualquer condição, observa o educador físico.
A lista de problemas que podem ser adquiridos ou ampliados ao se exercitar de forma inadequada é longa: tendinite, lesões musculares, fraturas por estresse, rupturas de tendão, dores variadas, piora de condições ortopédicas, desgastes e degenerações da coluna, hérnia de disco.
— Se o exercício for feito com carga inadequada, vai gerar lesões porque a musculatura ainda não está preparada para suportá-la. Se for feito em uma posição incorreta, pode ocorrer ou amplificar desvios posturais e facilitar a ocorrência de lesões mais graves. Se a pessoa já tem algum problema prévio, um desvio postural, uma tendência a tendinite ou tem algum grupo muscular muito enfraquecido porque fica muito tempo parado em uma posição no trabalho, pode ampliar o problema ao fazer um exercício — afirma o educador físico.
Não existe uma fórmula específica para todo mundo. Cada indivíduo terá a sua periodização específica porque cada pessoa tem um nível de capacidade de suportar o exercício
JERRI LUIZ RIBEIRO
Educador físico e professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da UFRGS
Influenciadora passou uma semana na UTI
Em 2023, um caso raro e extremo chamou atenção do Brasil. A influenciadora Kamila Rigobeli passou uma semana na UTI após ir pela primeira vez a uma aula de spinning que foi intensa.
Lá, a brasileira lesionou um músculo da coxa e acabou tendo rabdomiólise, doença grave que se caracteriza pela ruptura de fibras musculares, provocando uma liberação de toxinas para os rins, o que pode acarretar uma insuficiência renal aguda. Embora a ocorrência desse quadro seja rara e dependa de uma série de fatores, como preparo físico e calor, fica o alerta para se ter cautela ao praticar exercícios intensos e diferentes do seu habitual.
Segundo o ortopedista e traumatologista Eduardo Müller Ávila, há sinais de alerta de que se está passando do limite no exercício físico, como sentir que entre uma sessão e outra de exercícios não está havendo a recuperação ideal, a ponto de já chegar na academia cansado. Outro sinal de alerta é uma piora no rendimento e na força:
— Esse é um sinal importante porque o rendimento não deve piorar com a progressão do treino: deve se manter ou melhorar. A piora no rendimento significa que a pessoa não está se recuperando. É aquela dor que permanece: a pessoa faz um treino, sente uma dor e, no treino seguinte, a dor é ainda pior.
O ideal é não precisar parar

Cerca de quatro meses após as fraturas por estresse, Brenda Cardoso Gil relata que ainda sente os impactos do tempo que precisou ficar parada. Já voltou a correr, mas o fôlego não é mais o mesmo. E o contraste de ter passado de uma vida superativa para uma vida com nenhuma ou baixa movimentação durante semanas ficou como aprendizado:
— O momento em que me dei por conta de que não poderia fazer mais nada por um tempo foi horrível. Meu conselho para quem começa ou já está no esporte é procurar práticas para prevenir lesão e procurar profissionais competentes para auxiliar, porque é fácil se lesionar. E focar em uma progressão gradual, com calma. Hoje em dia, com esse boom das redes sociais de influenciadores de corrida, as pessoas se comparam muito, mas cada pessoa tem seu corpo e seu tempo.
O ortopedista e traumatologista Eduardo Müller Ávila afirma que o ideal é não chegar ao ponto de precisar parar de se exercitar, tanto para prevenir lesões como para a manutenção da saúde e do condicionamento adquiridos ao longo da vida. Por isso, explica ele, vale mais a pena tirar o pé do acelerador do que acabar se acidentando:
— Fazer as coisas mais devagar que o planejado é infinitamente melhor do que ter que parar. Estudos já mostraram que, em pacientes jovens e saudáveis, duas semanas de repouso absoluto provocam uma perda de massa muscular equivalente a 10 anos de envelhecimento, e muitas vezes eles não recuperam a massa muscular que tinham antes. Quando se é jovem, não se percebe muito essas alterações, mas no envelhecimento às vezes essas perdas são a diferença entre ter autonomia e deixar de ter.