A psicóloga caxiense Suélen Reckziegel busca na própria experiência vivida no começo do distanciamento social uma forma de explicar o aumento considerável nos atendimentos em seu consultório, em que recebe pacientes particulares e também oriundos de planos de saúde e convênios com sindicatos. A sensação de esgotamento devido à sobrecarga de trabalho, que pode desencadear a Síndrome de Burnout – termo em inglês que pode ser traduzido por “queimar-se por completo” – requer atenção ainda maior durante o período de maior tensão e propensão à fadiga provocado pela pandemia.
Mãe de um menino de seis anos e de uma menina de um ano e dez meses, ao deixar de atender no consultório e migrar para o atendimento online, em casa, a rotina passou a se mostrar ainda mais desgastante. Não apenas pelo cuidado em tempo integral com os filhos, mas também pela sensação de que a crise que viria com a pandemia poderia ser tão grave, que nenhum paciente poderia ser perdido. Trata-se de um dos fatores desencadeantes do Burnout: achar que é possível dar conta de tudo.
– De um dia pro outro, todos os meus atendimentos passaram a ser online. Precisaria de um tempo de adaptação, mas eu ficava com aquele sentimento de que se não fosse feito eu poderia perder trabalho, perder meu emprego. Tinha que estar disponível para responder cada mensagem, de cada paciente, a qualquer momento. Não me dei conta nos primeiros dias, depois passei a me sentir muito cansada – conta a psicóloga.
Foram sensações semelhantes que fizeram diversos pacientes procurarem o consultório de Suélen, especialmente entre os meses de outubro e novembro. A maioria, segundo a psicóloga, são pessoas que já haviam passado pelo processo psicoterapêutico, mas que com o avançar da pandemia se viram novamente diante da necessidade de procurar ajuda:
– São pessoas que passaram a se sentir extremamente pressionadas. O home office traz alguns benefícios, como a economia do tempo de deslocamento, mas sair de casa também tem coisas positivas, pois faz a pessoa se movimentar, trocar ideias com os colegas. A pandemia também trouxe um risco muito grande de demissões em massa e todos quiseram ser muito produtivos, responder a todas as mensagens, estar a toda hora disponível. É preciso ter um limite.
Incluído na Classificação Internacional de Doenças da OMS em 2019, em uma lista que entrará em vigor em 2022, o Burnout é um transtorno psíquico de caráter depressivo, com sintomas parecidos com os do estresse, da ansiedade e da síndrome do pânico, mas em que o especialista – psicólogo ou médico – percebe a associação com a vida profissional da pessoa. Se não for tratado, como explica a psicóloga caxiense Juliana Zen, pode evoluir para doenças físicas, como doença coronariana, hipertensão, problemas gastrointestinais, depressão profunda e alcoolismo. É preciso estar atento aos sintomas:
– Não é simplesmente o cansaço que qualquer pessoa tem após um dia ou uma semana de trabalho mais intenso. É além disso. A pessoa se sente exausta, desanimada, sem motivação para ir ao trabalho, para ser produtiva. Com isso pode vir a agressividade, a mudança brusca de humor, a irritabilidade, dificuldade de concentração, lapsos de memória, pessimismo, baixa autoestima. Mas o principal sintoma é o presenteísmo: a pessoa está no trabalho apenas de corpo presente, a mente está em outro lugar. Ela não tem mais capacidade de concentração, fica irritada por qualquer coisinha. Tende a se isolar, se alienar ou a ser cínica, irônica no relacionamento com as pessoas. Isso tudo também pode vir associado a sintomas físicos, como cansaço, sudorese, dores musculares, na nuca, nas costas, dificuldade de dormir, sintomas gastrointestinais – explica Juliana.
A psicóloga destaca que há uma explicação biológica para momentos de insegurança desencadearem crises emocionais. São momentos em que a tendência é que se use menos a razão, e se aja mais por impulso. Cita como exemplo pessoas que correram aos supermercados para fazer enormes estoques de papel higiênico logo no começo da pandemia.
– A pandemia nos deixa mais expostos ao Burnout por causa do medo. Nossa espécie chegou até aqui em função do medo: nossos ancestrais viviam em situações de luta e fuga pela sobrevivência. O que funcionava neles era o chamado cérebro reptiliano, uma área do cérebro que não pensa, que só tem essa função de sobreviver. Com a evolução, o ser humano desenvolveu o córtex cerebral, que é a parte pensante, de planejamento, de raciocínio. Em momentos críticos como a pandemia, o que volta a funcionar é o cérebro reptiliano, que aciona o estímulo da sobrevivência e deixa em segundo plano o raciocínio. E aí entram as crises de ansiedade e de agressividade. Quando pudemos ver as pessoas comprando papel higiênico nos mercados, por exemplo: o que levava as pessoas a fazerem aquilo? O cérebro reptiliano. É uma área do cérebro que não pensa, que só reage. Quando a pessoa consegue sair desse esquema e voltar ao raciocínio, ela se dá conta de que não precisa de tanto papel higiênico – complementa.
COLOCAR-SE NO LUGAR DO OUTRO
Palavra que pode parecer batida, a empatia pode ser de uma ajuda inestimável. Suélen Reckziegel conta que, alguns meses atrás, ela e um grupo de mães se uniram para uma ação singela, mas de importante caráter simbólico para demonstrar carinho com a professora da turma do seu filho, que durante a pandemia tem de encarar a reinvenção forçada pela suspensão das aulas presenciais.
– Nos reunimos e enviamos uma cesta de café da manhã pra ela. Foi algo bem simples, mas que achamos que a fez sentir acolhida – comenta.
Suélen também aponta algumas medidas que podem ser tomadas por empregadores – principalmente aqueles que mandaram seus funcionários para o home office – para não descuidarem da saúde emocional de suas equipes:
– É importante a empresa oferecer um espaço de escuta, tanto para que os funcionários possam falar sobre dificuldades que estão tendo no trabalho, quanto outras que sejam relacionadas, como questão com os filhos ou não ter um ambiente adequado para fazer um escritório em casa. Às vezes basta ter alguém de fora para dar alguma ideia que ajude a resolver. Outra questão é poder dividir as equipes em grupos e oferecer atendimento psicológico com alguém de fora da empresa, imparcial, que a pessoa vá se sentir mais à vontade para se abrir.
A importância de relaxar
Uma pesquisa realizada entre junho e julho deste ano, pela startup de tecnologia voltada para conteúdos médicos PedMed, apontou que 83% dos profissionais da saúde que atuam na linha de frente do combate à covid-19 no Brasil demonstravam sinais de Burnout. Entre as mais de 3,6 mil respostas obtidas pela internet, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem revelaram sentir sinais de exaustão com o volume muito maior de trabalho, especialmente nas UTIs, associado ao risco de contrair o vírus.
No Hospital Virvi Ramos, em Caxias do Sul, desde abril as equipes que trabalham no atendimento aos casos de covid -19 contam com as chamadas salas de descompressão, ambientes planejados para oferecer aos profissionais momentos de desafogo em meio ao dia a dia tenso das UTIs. Os espaços foram oferecidos pelo coletivo Arquitetos Voluntários e são de uso exclusivo dos profissionais que atendem casos de coronavírus.
– Foi algo que agregou muito, por permitir sair um pouco do ambiente mais pesado da urgência. Além disso, temos desenvolvido ações com o setor de RH como a presença de psicólogas nos setores mais críticos, além de atividades mais lúdicas, como um mural de fotos e recados mandado por familiares. Esses profissionais são verdadeiros heróis, que no começo da pandemia receberam muitas homenagens, mas agora que estamos no auge da doença as pessoas parece que esqueceram – destaca a diretora executiva do hospital, Cleciane Doncatto Simsen.
A médica intensivista Eveline Gremelmaier, cuja rotina de 12 horas diárias inclui atender as três UTIs do hospital, aproveita a sala para ter um momento de descontração e recuperar as energias. É a hora do dia em que ela pode tirar a máscara e abrir a janela para respirar ar puro ou relaxar no sofá.
– Há momentos em que a gente precisa descomprimir mesmo, por vezes dividir angústias com colegas, pensar melhor em como conduzir cada caso, além de sair um pouco da tensão que a gente vive dentro da UTI – relata a médica.
Eveline diz também que procura manter a saúde mental em dia apoiando e recebendo apoio da família e dos colegas:
– Tenho conseguido muito apoio do meu esposo e da minha filha pequena. Tento pensar que estou do lado que ainda é bom: estou cansada, mas minha saúde está preservada. Vários colegas demonstram sinais de que estão realmente cansados, mas somos uma equipe muito unida. A gente descarrega um pouco do estresse uns nos outros, se retroalimenta de esperança, trocamos alguns plantões para dar uma folga àquele que precisa mais, e assim seguimos em frente.
Ninguém dá conta de tudo
Para prevenir o Burnout, é preciso sair do piloto automático e se colocar atento aos próprios sentimentos e à forma de reagir às intempéries do ambiente profissional. A psicóloga Suélen Reckziegel elaborou uma lista com breves dicas para tentar encarar a vida profissional de forma mais leve. Confira:
Observa o teu próprio pensamento. Como tu estás te sentindo? O que está te deixando mais ansioso? É o trabalho? É a escola das crianças? Identifica isso e busca a ajuda que permita resolver os problemas menores, que às vezes são os que provocam a bola de neve.
Compreende que tu não és perfeito e que precisa de períodos de adaptação.
Desenvolva uma maior compaixão contigo mesmo. Acolhe os teus sentimentos, sejam de tristeza ou de sobrecarga, ao invés de ficar empurrando com a barriga e negando o fato desse sentimento existir.
Reconheça que a gente age de acordo com nossas possibilidades em cada momento.
Valorize o que tu estás dando conta de fazer, ao invés de valorizar só o que não consegues fazer. A lista do que a gente não conseguiu fazer está sempre presente internamente. Por isso, que tal pegar caneta e papel e fazer uma lista com o tema “o que eu estou dando conta”?
Na vida digital tudo parece perfeito. As pessoas postam que estão adorando, mas nem sempre é assim. Lembre-se que nem tudo que parece é e evite ser injusto contigo mesmo fazendo comparações.