Hitler pode ser engraçado? É permitido rir do homem que condenou ao sofrimento e à morte milhões de judeus? Humor e Holocausto combinam? Perguntas como essas assaltam o espectador assim que começa Jojo Rabbit (2019), filme ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado e disponível na plataforma de streaming do Telecine.
Jojo Rabbit concorreu a outras cinco estatuetas: melhor filme, atriz coadjuvante (Scarlett Johansson), edição, design de produção e figurinos. Interpretado por Taika Waititi, também diretor e autor do roteiro adaptado, um Adolf Hitler bastante caricato dá conselhos ao personagem-título, um menino alemão de 10 anos (Roman Griffin Davis, encantador). Nos estertores da Segunda Guerra Mundial, o guri está prestes a ingressar em um acampamento do Terceiro Reich para a formação da Juventude Hitlerista (um lugar que, no clima e na estética, faz lembrar os escoteiros de Moonrise Kingdom, de Wes Anderson). Lá, sob o comando de um capitão que trafega entre a melancolia e o sarcasmo, Klenzendorf (Sam Rockwell, sempre um prazer), Jojo se verá diante dos dilemas que pautam a trama: ele é, antes de tudo, uma criança ou um nazista? É uma pessoa ou uma idealização? Sua natureza é assassina ou protetora? Existe redenção mesmo em casos extremos?
O filme discute essas questões de maneira ousada, ainda que não inédita: a da sátira. Autodefinido como um "judeu da Polinésia", o neozelandês Taika Waititi segue uma longa tradição de paródias sobre Hitler e o nazismo. Dois dos exemplos mais conhecidos são O Grande Ditador (1940), que Charles Chaplin dirigiu e estrelou antes mesmo de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra, e Primavera para Hitler (1968), de Mel Brooks. Poderíamos até colocar nessa lista o incontrolável e interminável meme surgido da cena de A Queda! (2004) em que Hitler, percebendo sua derrota, explode de raiva contra seus comandados.
Waititi baseou Jojo Rabbit no romance O Céu que nos Oprime (Caging Skies), de Christine Leunens. Ao que consta, o cineasta de O que Fazemos nas Sombras (2014) e Thor: Ragnarok (2017) tomou uma série de liberdades em relação ao livro, a começar pela generosa injeção de diferentes tipos de humor, das piadas de texto à fisicalidade, com destaque para o timing perfeito da edição e para a introdução do personagem de Adolf Hitler como o amigo imaginário de Jojo — pense em uma versão distorcida da tira em quadrinhos Calvin e Haroldo. Mas, ainda que seja carismático, o Hitler de Waititi não é desenhado como alguém com quem devemos simpatizar. À luz do que aprendemos sobre o conflito, os nazistas são ridicularizados; sua decadência militar — que obrigou crianças a irem ao front — e sua obediência cega ao Führer viram alvo de piadas, a maluquice de suas ideias sobre os judeus é realçada. Eis o absurdo do nazismo.
A mão do diretor também se faz presente no som de Jojo Rabbit: embora os cenários e os figurinos (ambos concorrentes à estatueta dourada) remetam à Alemanha dos anos 1940, o elenco fala um inglês contemporâneo, e a trilha sonora traz músicas de artistas bem posteriores, como Beatles, David Bowie e Roy Orbison. Em entrevista ao site Vulture, Waititi justificou:
— Se tratarmos de Hitler e do nazismo como uma coisa que aconteceu há 80 anos e a mantivermos dentro da "caixa histórica", então estamos assumindo que nunca poderá acontecer de novo.
Nesse sentido, é muito eficaz a sequência dos créditos de abertura, em que imagens de arquivo dos comícios de Hitler são acompanhadas por Komm Gib Mir Deine Hand, a versão em alemão de I Wanna Hold Your Hand, dos Beatles: Waititi traça um paralelo entre a beatlemania e o culto a Hitler, ambos adotados por vontade própria da população — o nazismo, vale lembrar, chegou ao poder via voto.
A idolatria do pequeno Jojo é posta em xeque quando surge o conflito dramático do romance de Leunens: o menino descobre que sua mãe, Rosie Betzler (Scarlett Johansson), está escondendo dentro de casa uma adolescente judia, Elsa (Thomasin McKenzie, que está no novo filme de M. Night Shyamalan, Tempo). A partir daí, Jojo Rabbit permite uma aproximação com A Vida É Bela (1997), de Roberto Benigni, em que um judeu se esforça para fazer seu filhinho acreditar que o campo de concentração é parte de uma grande brincadeira. Waititi acresce outras indagações aos personagens e aos espectadores: o que é a verdade? O quanto uma mentira pode ser benéfica? Sem a fantasia, como encarar a realidade? Como lidar com nossos medos e nossos desejos sem machucar os outros?
Também a partir do dilema que se estabelece na relação entre Rosie, Jojo e Elsa, o filme atreve-se a desnortear o público, oscilando entre a comédia aloprada e o drama devastador. Como exemplo, um chiste sobre clones humanos pode ser sucedido por uma cena que mostra alemães enforcados por traição. O recado é claro: os nazistas são ridículos, mas também são perigosos. A ameaça do extremismo nacionalista deve ser levada a sério, ontem e hoje.
No equilíbrio nem sempre a contento entre o humor e a contundência, Taika Waititi encontra um modo delicado e pungente de traduzir visualmente a jornada de amadurecimento de Jojo Rabbit. Repare na relação do menino com os cadarços de sapatos. Se no começo do filme ele não consegue atar os seus — é, portanto, incapaz de seguir seu próprio caminho; anda conforme o pensamento dominante —, ao final, não sem sofrer, já adquiriu habilidade suficiente para ajudar outra pessoa. Quem pode desabar no choro feito criança é o espectador, despreparado para o epílogo sem palavras, tão simples quanto significativo, amarrando trajetórias, afetos e lembranças sob o embalo de uma canção ao mesmo tempo inesperada e acertada: os versos manifestam arrebatadoramente o que os personagens estão sentindo.