Continuações, como Um Lugar Silencioso: Parte II, que tem sessões de pré-estreia nos cinemas na quarta-feira (21) e entra em cartaz na quinta (22), são facas de dois gumes. Por um lado, sequências atendem ao desejo dos espectadores — leia-se: apostam no sucesso de bilheteria do filme original — de conhecer mais dos personagens que os cativaram, de descobrir os desdobramentos da história contada, quem sabe mergulhar no passado ou projetar um futuro. Por outro, justamente por nascerem de uma obra bem-sucedida (aí incluído o ponto de vista artístico), já vêm ao mundo à mercê das inevitáveis comparações. Muitos filhos sucumbem à sombra do pai. Mas também há aqueles que os superam ou que, pelo menos, geram o interminável e subjetivo debate: qual é o melhor?
Um caso clássico é o de O Poderoso Chefão (1972) e O Poderoso Chefão: Parte II (1974), ambos ganhadores do Oscar de melhor filme, sendo que o segundo, no total, levou o dobro de estatuetas (6 a 3). Seja entre os fãs, seja entre os críticos, nunca haverá um consenso.
Talvez aconteça algo parecido a respeito de Um Lugar Silencioso e Um Lugar Silencioso: Parte II, que, dada a expectativa de retorno comercial, teve sua estreia sucessivamente adiada nos Estados Unidos e no Brasil, em busca de uma data na qual a pandemia não impusesse tantas restrições nem afugentasse tanto o público.
Lançado em 2018, Um Lugar Silencioso (A Quiet Place) foi um fenômeno financeiro: custou US$ 17 milhões e arrecadou 20 vezes mais — US$ 340 milhões (a Parte II já chegou a US$ 285 milhões e é a quinta maior bilheteria de 2021). Também conquistou a crítica, como indicam os 96% de avaliações positivas no Rotten Tomatoes (a Parte II está com 91%). Entrou na lista dos 10 melhores filmes do ano pelo American Film Institute, pelo National Board of Review e pela Associação dos Produtores dos EUA, além de valer a Emily Blunt o troféu de atriz coadjuvante pelo Sindicato dos Atores. No Oscar, contudo, seguindo a sina das obras filiadas ao terror, quase passou batido. Só concorreu na categoria de edição de som.
O som — ou a ausência dele — é um personagem à parte nesse universo criado pelo ator e diretor John Krasinski (o eterno Jim da série The Office) na companhia dos roteiristas Bryan Woods e Scott Beck. Bebendo de filmes como Encurralado (1971), Tubarão (1975), Jurassic Park (1993) e Guerra dos Mundos (2005), todos de Steven Spielberg, e da franquia Alien, Krasinski centrou o foco em uma família da cordilheira dos Apalaches, nos EUA, para contar uma história de invasão alienígena. O pai, Lee Abbott (interpretado pelo próprio cineasta), a mãe, Evelyn (encarnada por Emily Blunt, sua esposa na vida real), e os filhos Regan (Millicent Simmonds), Marcus (Noah Jupe) e o caçula Beau precisam andar descalços, se comunicar com gestos e jogar Banco Imobiliário com peças de algodão: os monstros vindos do espaço não enxergam, mas têm uma audição muito apurada, uma espécie de radar, e atacam ao menor ruído.
Daí que Um Lugar Silencioso é um filme que sabe ser silencioso, dando peso duplo aos rangidos de um piso, ao balanço do vento em um milharal ou mesmo à respiração a aos batimentos cardíacos dos personagens. O impacto é ampliado em cenas com a presença da adolescente Regan, que é surda (como a atriz Millicent): quando ela tira o implante coclear, vivemos momentos de vazio sonoro.
Em entrevistas à época da estreia, John Krasinski justificou:
— Vivemos em um mundo hoje com todos esses filmes, como os da Marvel, com muito som, muitas explosões. Gosto muito deles, mas há algo meio agressivo nesse barulho todo. Aí pensamos: "E se conseguirmos eliminar tudo? Seria possível criar algo tão desconcertante, desconfortável e tenso?".
Em Um Lugar Silencioso: Parte II, Krasinski não reinventa a roda, mas a incrementa. Bastante. A ponto de compensar a falta do fator surpresa. Na verdade, o diretor cria um novo elemento de tensão e temor: a interação dos Abbott com outros seres humanos.
Antes, em um prólogo de 10, 12 minutos, recua no tempo para mostrar o início do apocalipse alienígena. Estamos em um dia de sol e de crianças jogando beisebol. Lee ainda está vivo, fazendo compras no mesmo mercado da abertura do primeiro filme — com dor no coração, vemos inclusive o brinquedo que desencadeará a morte do pequeno Beau. Nas arquibancadas, conhecemos o personagem interpretado pelo bom ator Cillian Murphy, um amigo de Lee, Emmett. Mais tarde, ele vai proferir a frase que traduz a mistura de amargura e selvageria à que foi reduzida a humanidade desde que OVNIs começaram a riscar o céu azul daquela pacata cidadezinha estadunidense:
— Não existe mais ninguém que valha a pena salvar.
É nesse mundo que os Abbott restantes — incluindo um bebê de colo —, depois que sua casa pegou fogo ao final da primeira parte, tentarão sobreviver, buscando um novo refúgio e serpenteando entre as furtivas criaturas extraterrestres, pessoas desesperançadas e grupos predatórios. Os perigos surgidos a partir do dia 474 da invasão mostram que Krasinski aprimorou habilidades hitchcockianas, como o poder de sugerir (vide a cena na plataforma da estação de trem), mas também não tem medo de jogar às claras nos ataques dos monstros (sejam de outro planeta ou não).
Uma das estratégias mais bem empregadas pelo diretor é a de retomar adiante um diálogo lá de trás, ou, com o máximo de discrição possível, enfatizar um elemento do cenário para mais à frente torná-lo um verdadeiro protagonista, em um recurso capaz de provocar um sorriso nervoso do espectador atento — lembram-se do prego na escada do primeiro filme? Temos o equivalente aqui, só que em uma escala maior de gravidade. Gritinhos de susto durante a sessão e o trançar de pernas aflitas nas poltronas devem, em contraste ao título, tornar o cinema um lugar barulhento.
Mal dá tempo de respirar durante os 97 minutos de projeção, mas o filme encontra espaço para desenvolver os personagens. Regan e Marcus vivem uma jornada de amadurecimento. Enquanto o garoto precisa lidar com seus medos, a garota parece simbolizar, na luta contra os aliens, a juventude que se mobiliza em torno de causas sociais, políticas, ambientais etc., os jovens que não aceitam que as coisas sejam apenas como os adultos dizem. Krasinski também sinaliza, a todo instante, a importância da comunicação, da empatia e da cooperação para as comunidades enfrentarem adversidades — venham do espaço ou não.
Então, como resumiu com precisão o crítico Alejandro Turdo no canal do YouTube Hoy Sale Cine, "Um Lugar Silencioso: Parte II faz tudo o que uma sequência adequada deve fazer: continuar o arco original, expandir seu universo e ampliar os limites do personagem. Uma terceira parte parece quase inevitável neste momento — e algo pelo qual esperar, na verdade".
Por falar em trilogia — e para voltar ao ponto de partida deste texto —, dá até para fazer um paralelo entre Um Lugar Silencioso: Parte II e O Poderoso Chefão: Parte II. Figura chave para a sobrevivência dos Abbott na primeira parte, Regan, como Michael Corleone no segundo filme dos mafiosos, precisa, agora que o pai se foi, assumir os negócios da família. A trama escrita por Krasinski não chega a alternar passado e presente, mas também se divide em dois núcleos, um servindo de reflexo para o outro. E, na tentativa de desbravar o mundo, há inclusive uma ilha que pinta como paraíso mas pode virar um inferno.