Em cartaz a partir desta quinta-feira (27) nos cinemas e na plataforma Disney+, via Premier Access (quem é assinante do streaming precisa pagar uma taxa de R$ 69,90!), Cruella não é apenas mais uma refilmagem com atores ou em estilo realista de um desenho animado do estúdio — a 14º em uma lista iniciada por Alice no País das Maravilhas (2010). Trata-se, também, de mais um filme recente em que um personagem malvado ganha protagonismo, em que um vilão pode ser encarado como anti-herói, em que o revisionismo histórico é aplicado à ficção.
Começou com a própria Disney, que em 2014 estreou Malévola, com Angelina Jolie no papel principal. Ali, descobrimos que a bruxa de A Bela Adormecida só amaldiçoa a vida da princesa Aurora porque sofreu uma terrível traição na adolescência. Mais do que isso: na "verdade", era a própria Malévola, e não as três fadas, quem protegia a mocinha. Na continuação lançada em 2019, soubemos que nem cabe à vilã de mentirinha a culpa pelo sono profundo que acometeu o Reino dos Moors.
Ainda em 2019, tivemos Coringa, no qual o notório psicopata, homicida em massa e arqui-inimigo do Batman ganhou uma história de origem bastante humanizadora, a ponto de, desde a primeira cena, sermos levados a nutrir empatia pelo futuro vilão, fruto envenenado pelo Estado e pela sociedade que o abandonaram. O papel valeu o Oscar de melhor ator a Joaquin Phoenix.
Agora chegou a vez de Cruella De Vil. Ambientado na Londres dos anos 1970 e embalado por uma trilha onipresente que inclui Rolling Stones (obviamente, com a lugar-comum Sympathy for the Devil), Queen, David Bowie, Supertramp, The Clash e Deep Purple, o filme é pré-101 Dálmatas, ou seja, foca na transformação da jovem estilista Estella (interpretada por Emma Stone) na fashionista nefasta Cruella. Além dos figurinos bolados por Jenny Beavan (vencedora do Oscar por Uma Janela para o Amor, de 1985, e Mad Max: Estrada da Fúria, de 2015) e do trabalho de maquiagem e cabelos, vale destacar a atuação de Paul Walter Hauser como Horace/Horácio, um dos ajudantes da aspirante a vilã (o outro é Gaspar, vivido por Joel Fry, de Yesterday).
Cruella, como escreveu meu colega William Mansque, é uma das piores vilãs da Disney: "é ela quem almejava matar 99 filhotes de dálmatas só para produzir um casaco de pele". Agora, uma cena trágica "justifica" seu ódio. E a personagem vira uma anti-heroína, já que encara gente muito pior (a Baronesa, papel de Emma Thompson). Não por acaso, a Disney escalou como diretor o australiano Craig Gillespie, que em Eu, Tonya (2017) mostrara a versão da patinadora Tonya Harding (vivida por Margot Robbie, indicada ao Oscar de melhor atriz) para um dos maiores escândalos do esporte olímpico: o caso de agressão a Nancy Kerrigan, sua rival na equipe dos EUA para os Jogos de Inverno de 1994.
Do Exterminador do Futuro a Loki
Angelina Jolie. Joaquin Phoenix. Emma Stone. Margot Robbie. Notem que são sempre astros e estrelas de Hollywood os escolhidos para vestirem a nova roupagem de tipos vilanescos. Isso tem peso fundamental na percepção dos personagens pelo público.
E esse fator foi preponderante em uma das primeiras e mais famosas metamorfoses. Em O Exterminador do Futuro (1984), o robô T-800 encarnado por Arnold Schwarzenegger era um assassino frio. Em O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991), Schwarzenegger interpreta um ciborgue da mesma linha, mas desta vez ele está ao lado de Sarah Connor. É que, entre um filme e outro, o ator nascido na Áustria tornou-se muito popular, inclusive com as crianças, graças à comédia Um Tira no Jardim de Infância (1990).
Há outros exemplos semelhantes. O Escorpião Rei vivido em parte por Dwayne "The Rock" Johnson, em parte por CGI (computação gráfica) em O Retorno da Múmia (2001) ganhou no ano seguinte status de herói e uma aventura solo que deu início a uma franquia (mas o ex-lutador estrelou apenas o primeiro filme).
Falando em franquia, a dos X-Men é reincidente. Na trilogia original, Mística, na pele de Rebecca Romijn, era da turma do mal. Nos filmes posteriores — mas que se passam antes dos primeiros —, a personagem, agora interpretada por Jennifer Lawrence, tem atitudes heroicas, embora ainda flerte com o lado sombrio dos mutantes. E vejam como, contrariando o ditado, o homem faz a roupa: o Magneto de Ian McKellen era pura vilania; o de Michael Fassbender chegou a se aliar ao Professor Xavier.
As adaptações de quadrinhos de super-herói são terreno fértil para essas transformações (que, verdade seja dita, também costumam acontecer nas páginas dos gibis). Venom, que foi um dos vilões em Homem-Aranha 3 (2007), com Topher Grace no papel, agora tem uma franquia protagonizada por Tom Hardy — o segundo filme, Tempo de Carnificina, está previsto para setembro. Dentro desse aranhaverso, em 2022 teremos Jared Leto encarnando Morbius, um vampiro que também deve receber contornos de anti-herói.
Um dos casos mais reluzentes é o de Loki. Ele nasceu como um típico vilão shakespeariano, em Thor (2011), e tentou liderar uma invasão alienígena em Os Vingadores (2012). Mas a interpretação de Tom Hiddleston foi tão fascinante, que o Deus da Trapaça logo conquistou uma legião de fãs — como consequências, tornou-se capaz de gestos nobres e virou astro de uma minissérie batizada com seu nome, a terceira da Marvel no Disney+ (após WandaVision e Falcão e o Soldado Invernal), em cartaz a partir do dia 9 de junho.
Como você viu, a lista de vilões que foram, no mínimo, maquiados é extensa (isso que nem falei de Darth Vader, Hannibal Lecter, Norman Bates e a enfermeira Ratched). E não deve parar por aqui, até porque ainda há muitos personagens maus dos quais não vimos o outro lado. Quem sabe um dia conheceremos o Max Cady de Cabo do Medo como um jovem que ajudava idosas a atravessar a rua? Que tal se a criatura sanguinária de Alien virasse uma espécie fofinha como a de E.T.? E já pensou se a Disney resolve redimir Scar, o felino que traumatizou gerações em O Rei Leão? Afinal, no fundo, no fundo, o tio de Simba é uma vítima do ageísmo, o preconceito contra os mais velhos, né?