Malévola é o Coringa da Disney, com pelo menos duas diferenças significativas (para além, claro, do gênero dos personagens): surgiu antes e pode ser assistida pelas crianças. Os dois são frutos de revisionismo histórico aplicado à ficção. Suas longas fichas criminais – que se estendem por décadas no caso do arquirrival do Batman, séculos no da vilã de A Bela Adormecida – foram justificadas: o abandono pelo Estado e pela sociedade transformou Arthur Fleck em um homicida, e a outra só se tornou bruxa porque sofreu uma terrível traição na adolescência.
Em cartaz nos cinemas, Malévola: Dona do Mal dá prosseguimento à desconstrução da maldade iniciada em 2014, quando descobrimos que era anti-heroína interpretada por Angelina Jolie, e não três fadas atrapalhadas, a verdadeira protetora de Aurora. Cinco anos depois, saberemos que nem cabe à maléfica de mentirinha a culpa pela célebre maldição ter se abatido sobre a princesa encarnada por Elle Fanning (que volta e meia parece estar dormindo em cena).
Malévola é o Game of Thrones da Disney, mas sem sexo!, não se preocupem. O filme dirigido pelo norueguês Joachim Rønning (de Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar) investe em intrigas palacianas e em uma guerra entre povos: os moors, seres mágicos como fadas aladas, árvores andantes e duendes alquimistas, e os humanos, ricos e engomados. É como se os primeiros fossem a união dos Stark e dos Targaryen, e os outros, os Lannister – inclusive vivem em um castelo à beira-mar, tal qual a Porto Real de Westeros.
Acréscimo bem-vindo ao elenco original, Michelle Pfeiffer encarna uma espécie de versão mais velha — e não incestuosa! — da maquiavélica Cersei Lannister. Como manda o figurino, a rainha Ingrith vai conspirar, tirar o marido de jogo, trair o filho, tentar matar a nora. A batalha entre moors e humanos remete aos combates do seriado da HBO e quase conta com um dragão que cospe fogo (a semelhança – ou seria a inspiração? – é evidente). Sinistramente, uma sequência que precede o confronto remete tanto aos massacres em um casamento e em uma igreja de GoT quanto aos horrores do Holocausto: os seres mágicos são aprisionados em uma capela que ganha contornos de câmara de gás quando uma jovem assecla de Ingrith começa a dedilhar teclas especiais de um órgão.
Malévola é o X-Men da Disney, mas sem Hugh Jackman. Gravemente ferida a certa altura do filme, Malévola é salva por Conall (Chiwetel Ejiofor), que a leva para o santuário das fadas das trevas (que, com seus rostos maquiados e seus corpos seminus, suas caretas exageradas e seu gestual pouco espontâneo, me fizeram, estranhamente, pensar em como seria a antológica abertura de Selvagens Inocentes – aquela novelinha porto-alegrense exibida no Canal 20 no começo dos anos 2000 – se o diretor Juan Carlos Sosa não tivesse restrições orçamentárias). Ali, entre seus pares, ela será testemunha de um debate que evoca aquele travado por Charles Xavier e Magneto na franquia dos mutantes. Borra (Ed Skrein) quer arregimentar todas as fadas das trevas para enfrentar os humanos e recuperar seus lares. Conall entende que uma guerra condenará sua espécie. Com poder para pender a balança para o lado pacifista ou para o belicoso, a protagonista é uma espécie de Fênix Negra — literalmente!
Malévola é o Avatar da Disney, mas com uma paleta de cores bem mais variada. Como o mundo azul imaginado pelo cineasta James Cameron, os reinos e as paisagens de fadas e humanos são reféns da tecnologia. O filme exibe sem parcimônia seus efeitos visuais, seja em uma cena contemplativa, mais fechada e supostamente íntima, seja nos campos de batalha, em planos abertos e supostamente épicos. É algo intrusivo, que só é feliz em desviar o foco do roteiro genérico – uma colcha costurada com retalhos de outras tantas histórias, como essas citadas – e que acaba conferindo artificialidade aos cenários e às criaturas. Também reflete o que considero um paradoxo na onda dos remakes de desenhos animados clássicos que a Disney iniciou em 2010, com Alice no País das Maravilhas (Malévola: Dona do Mal é o 11º em uma lista que inclui A Bela e a Fera e Aladdin). O emprego de atores empresta realismo, mas a abundante computação gráfica rompe a ilusão. A versão de O Rei Leão nem precisou colocar, nos créditos finais, aquele aviso de que "nenhum animal foi maltratado ou ferido durante a realização deste filme" – porque nenhum animal foi utilizado.
O que vem por aí
A Disney vem produzindo versões live-action de seus desenhos animados desde 2010. Dos 11 filmes, quatro ultrapassaram a marca do US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais: Alice no País das Maravilhas (2010), A Bela e a Fera (2017), Aladdin (2019) e O Rei Leão (2019). Mogli – O Menino Lobo (2016) chegou pertinho, US$ 966 milhões, e Malévola (2014), sexto nesse ranking, faturou US$ 758 milhões. Completam a lista Cinderela (2015), Alice Através do Espelho (2016), Christopher Robin (2018), Dumbo (2019) e Malévola: Dona do Mal.
Pelo menos outros seis títulos estão a caminho. Em novembro, com o lançamento nos Estados Unidos de seu serviço de streaming, o Disney+ (que só chegará à América Latina em 2020 ou 2021), estreia o remake de A Dama e o Vagabundo – dublados por Tessa Thompson e Justin Theroux.
A promessa de um contraponto à artificialidade de Malévola está presente no trailer de Mulan, filme previsto para março de 2020. As cenas enfatizam o que falta na aventura da vilã que não é mais vilã: interação humana – mais precisamente, ação corpo a corpo. O dragão Mushu nem deu o ar de sua graça.
Para 2021, teremos Cruella, que mostrará a juventude da vilã dos 101 Dálmatas (encarnada por Emma Stone). E, mais futuramente, A Pequena Sereia (com Halle Bailey), Lilo & Stitch e O Corcunda de Notre-Dame.