Qual é o papel da música das nossas vidas? Qual é o papel dos sonhos no mundo? O que seria do mundo sem a música? O que seria das nossas vidas sem os sonhos?
Essas reflexões se avultam no documentário Mr. Dreamer, que estreia nesta quinta-feira (29) na plataforma de streaming Now (e em breve estará no Globoplay).
O protagonista tem cancha nos assuntos. Hoje com 64 anos, o empresário gaúcho Pedro Sirotsky tinha 17 quando começou uma trajetória dedicada ao rock e ao pop no rádio e na TV que culminou no programa Transasom. De 1974 a 1979, na então TV Gaúcha, a atração promovia uma comunicação “de jovem para jovem”, como frisava o apresentador Pedrinho. E aí, no auge do sucesso...
— Meu pai, meu ídolo, me pediu para eu abandonar o que eu mais amava — Pedro conta no documentário, lembrando de quando Maurício Sirotsky Sobrinho (1925-1986), fundador do Grupo RBS, disse para o filho assumir um cargo executivo na empresa da família.
O peito aberto de Pedro é um dos trunfos de Mr. Dreamer. Ao longo de 50 minutos, ele não se furta de revelar mágoas, dúvidas, brigas e, claro, sonhos. O título do documentário dirigido por Flavia Moraes e roteirizado pelo jornalista Marcelo Ferla (coautor do livro de memórias Lembra do Transasom?, de 2007) faz ponte entre o presente, o passado e o futuro. Dreamer é o nome da canção da banda Supertramp que era o tema do Transasom, e Pedro se apresenta no filme como Mr. Dreamer, o Sr. Sonhador, um homem que resolveu se reinventar para perseguir o que lhe move: a música.
Que seguiu presente na sua vida mesmo durante os 40 anos em que “hibernou nas cavernas do mundo corporativo”, como ele diz. Na RBS, onde hoje integra o Conselho de Acionistas e de Administração, participou da criação da Rede Atlântida FM, do selo RBS Discos e da rádio Itapema FM, por exemplo.
Mr. Dreamer nasceu para ser uma série, com cada episódio em um país. A primeira parada foi em Dublin, em setembro de 2019. Na capital da Irlanda, Pedro conheceu estudantes e jovens artistas de rua como Ari Noir, que disse: “Existe o mundano e existe a música. É transcendental”. Ou Ciáran Darce: “A grande virtude da música é o espectro sobre diferentes emoções. Tem música para quando você está bravo, para quando está triste, para quando está feliz”. Ou ainda Conor McQuaid: “A música te permite contatar seus sentimentos”. E Alan McKee, logo apelidado de Guru pelo brasileiro: “Eu não quero ser famoso só por ser famoso, eu quero causar um impacto positivo”.
No meio da gurizada, o sessentão voltou a se sentir Pedrinho. Mas ele percebe que são outros tempos. “Que geração é essa, que não gosta de automóveis?”, se indaga ao contrastar a sua época, quando um carro era sinônimo de aventura, liberdade e romantismo, com a praticidade ambiental dos jovens de hoje. Na loja de discos, mais um choque geracional: Alan cita a atual e obscura banda Coltran3, mas o gaúcho pensa no saxofonista John Coltrane (1926-1967).
O papo segue animado. A galera conta que, hoje, talvez a popularidade seja mais importante do que o talento. O número de likes e de seguidores valeria mais do que os cifrões de um contrato com uma grande gravadora. Será?
As respostas ficaram em suspenso. Porque daí veio outro baque, para Pedro, para Alan e para todos: a pandemia de coronavírus.
Se por um lado a brusca virada na trama afasta Mr. Dreamer de seu plano de voo inicial, por outro confere mais dramatismo, universalidade e urgência ao documentário. A viagem agora é outra.
— Olhar para dentro se tornou o destino mais procurado no mundo. Você consegue se enxergar?
Pedro dirige essa pergunta para ele próprio também. Ele sofreu com a interrupção da sua retomada. Durante uma videochamada em que se diz “perdido e ansioso”, o Guru de 20 e poucos anos rebate:
— Você me ligou para saber de mim ou para fazer terapia? Está todo mundo afundado na merda, e você reclamando sem precisar se preocupar com isso. A minha geração está sofrendo, não temos dinheiro, nem para viver neste planeta que está sendo destruído. Se não conseguimos respirar, imagina sonhar? Você precisa acordar, cara.
Pedro Sirotsky acordou. Foi a Porto Alegre procurar os conselhos do rabino Guershon Kwasniewski, que lhe falou sobre a importância de “fazer uma pausa, colocar uma vírgula” quando achamos que os obstáculos da vida — sejam os 40 anos do povo judaico no deserto, seja esta peste do século 21 — são eternos. Recarregou as baterias na Praia da Barra (SC), onde mora perto do verde e do mar. O mar onde limpa suas angústias e se reenergiza no clipe que encerra Mr. Dreamer, uma canção de Alan McKee gravada com a participação remota dos outros jovens dublinenses, todos entoando o refrão que convida a nunca desistir de perseguir seus sonhos, o “combustível que nos move”, como definiu o rabino: “Inspire, respire fundo / Olhos bem abertos / Para sempre desperto”.
A visão de quem fez
“Quando eu recebi o piloto, já estava isolado na praia. Eu me sentia perdido, não só com a pandemia, mas com o projeto. O que fazer daqui para frente? Essa inquietação acabou se revertendo em inspiração. Era impossível seguir na ideia original, mas mais impossível era deixar de refletir, deixar de fazer o aprofundamento individual que todo mundo deveria estar fazendo. Acho que não existe melhor tratamento precoce do que sonhar. A gente quer que as pessoas se sintam despertadas, parem para pensar: mesmo no meio dessa merda toda é possível sonhar.” (Pedro Sirotsky, empresário e sonhador)
“A discussão entre o Pedro e o Alan McKee é um ponto interessante no documentário. O Pedro, que ensinou rock para um monte de gente no RS, vai para Dublin meio que como um professor, um sábio, inclusive faz julgamentos sobre a garotada. Quando volta, o adulto da história percebe que também pode ser ensinado pelos jovens.” (Marcelo Ferla, roteirista)
“Um documentário sobre sonhos já traz um antagonismo. Não nos filiamos a uma categoria mais jornalística. Isso explica por que não resgatamos a história do Transasom. Não quisemos tratar do passado, mas projetar o futuro. Gostamos da expressão docudrama porque é um filme poético, envolve mais dramaturgia. Existem licenças, até porque as fronteiras dos documentários estão se expandindo. O batismo no mar, por exemplo, mistura imagens captadas em uma piscina com cenas de muita coragem do Pedro, que se jogou no mar gelado e turvo de SC.” (Flavia Moraes, diretora)
A história do “Transasom”
Os versos “Dreamer, you’re nothing but a dreamer...”, da banda inglesa Supertramp, levavam a magrinhagem gaúcha dos anos 1970 ao universo do rock. A bordo do Transasom, que se espraiou do rádio e da TV para os bailes de Porto Alegre, Pedro Sirotsky foi um dos pioneiros da cultura jovem no Rio Grande do Sul. A história do programa exibido entre 1974 e 1979 pela TV Gaúcha (hoje RBS TV) originou o livro Lembra do Transasom? (L&PM, 2007), escrito por Marcelo Ferla sobre depoimentos de Sirotsky. Organizado como se fosse um disco de vinil, o volume mescla reconstituição histórica, memórias e aventuras – como a de Pedrinho e o cantor Hermes Aquino (ambos na foto acima) viajando de Rural Willys até Torres para gravar o clipe de Nuvem Passageira.