Pelo menos no cinema, os 157 minutos de Eternos, que estreia na plataforma Disney+ nesta quarta-feira (12), pareciam eternos. Pode ser que em casa, parando quando der fome, sede ou sono, a coisa não seja tão maçante.
Baseado na homônima história em quadrinhos criada em 1976 por Jack Kirby, o 26º título do Universo Cinematográfico Marvel (UCM) traz a assinatura de Chloé Zhao, chinesa radicada nos Estados Unidos que venceu os Oscar de melhor filme e direção por Nomadland (2020). Ela deu um salto arriscado na carreira. Depois de rodar com apenas US$ 5 milhões e a participação de nômades da vida real o drama intimista da mulher que passou a morar dentro de uma van por causa da recessão econômica, em Eternos dispôs de US$ 200 milhões no orçamento, contou com uma dezena de astros de Hollywood no elenco e precisou lidar com personagens gerados por computação gráfica.
As boas ideias do roteiro e da concepção visual acabam atrapalhadas pela necessidade de fazer um filme da Marvel, conectado às aventuras dos Vingadores, cheio de cenas de ação com efeitos digitais, disparando piadas de salão em meio a momentos supostamente graves e com uma música intrusiva e onipresente como de hábito no gênero, mas surpreendentemente piegas na maior parte do tempo — o responsável é Ramin Djawadi, das séries Westworld e Game of Thrones. O retorno de bilheteria foi razoável: fechou 2021 na décima colocação, com US$ 401 milhões, logo abaixo de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis (US$ 432,3 milhões) e acima de Duna (US$ 394,5 milhões). Mas bem longe do US$ 1,2 bilhão de Homem-Aranha: Sem Volta para Casa.
Escrita por Zhao, Patrick Burleigh, Kaz Firpo e Ryan Firpo, a trama é bastante didática (explica-se tudo o tempo todo), a começar pelo letreiro que apresenta os Eternos, alienígenas criados pelos Celestiais e que há 7 mil anos vivem em segredo na Terra, onde protegem a humanidade dos monstruosos Deviantes. O ponto de chegada foi a Mesopotâmia, um dos berços da civilização e palco dos Jardins Suspensos da Babilônia, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Lá, combinam-se de modo espetacular os trabalhos do diretor de fotografia Ben Davis (de Guardiões da Galáxia, Doutor Estranho e Capitã Marvel), dos editores Dylan Tichenor (indicado ao Oscar por Sangue Negro e A Hora Mais Escura) e das equipes de design de produção, direção de arte e efeitos especiais. Nesse cenário, conhecemos um pouco da personalidade e dos poderes dos novos velhos heróis, um exército multiétnico que porta bandeiras da diversidade:
Sersi, interpretada pela britânica de ascendência chinesa Gemma Chan (da comédia Podres de Ricos), desenvolve empatia pelos humanos e tem a capacidade de alterar a estrutura molecular das coisas (de sólido para líquido, de líquido para gasoso etc);
Ikaris, vivido pelo escocês Richard Madden (o Robb Stark de Game of Thrones), pode voar, projeta raios de seus olhos e parece estar sempre enfarado;
Kingo, papel do paquistanês-estadunidense Kumail Nanjiani (das comédias Doentes de Amor e Os Pombinhos), lança projéteis de energia cósmica de suas mãos e curte, muito, ser famoso e fazer piadas;
Sprite, traduzida nas legendas como Duende, é uma Eterna presa a um corpo de adolescente — o da simpática estadunidense Lia McHugh, talvez dona da melhor atuação, graças a uma personagem que tem desenvolvimento dramático, motivações mais definidas e um superpoder bacana: o de criar ilusões vivas, como clones;
Phastos, encarnado pelo ator negro Brian Tyree Henry (da série cômica Atlanta e da mais recente versão de Brinquedo Assassino), é o inventor da patota e, como diz a Wikipedia, "o primeiro super-herói a ser retratado como gay em um filme do UCM";
Makkari, velocista e primeiro personagem surdo da Marvel, com interpretação de Lauren Ridloff, que já foi Miss América Surdos e que fez a professora Diane em O Som do Silêncio;
Thena (uma Angelina Jolie no piloto automático), guerreira que cria armas luminosas como espadas e lanças;
Gilgamesh, fortão com uma "mão de pedra" que marca a estreia em Hollywood do sul-coreano Don Lee, novo nome artístico de Dong-seok, como foi creditado em Invasão Zumbi, por exemplo;
Ajak (a mexicana Salma Hayek), líder sábia e espiritual dos Eternos e dona do poder de curar;
E Druig (o irlandês Barry Keoghan, da minissérie Chernobyl), que pode controlar a mente das pessoas — e que, por isso, se torna catalisador de um racha no grupo.
Na transição para a Londres dos dias atuais, puxada pela canção Time, do Pink Floyd, Chloé Zhao nos lembra que este é um filme do universo Marvel, onde um raríssimo terremoto na capital inglesa não altera a rotina das pessoas: apesar do abalo sísmico, está de pé a festa de aniversário de Dane Whitman (Kit Harington, o Jon Snow de GoT), namorado de Sersi. Mas a noite não acaba bem para o casal: surgem um Deviante enfezado e Ikaris, o ex de Sersi. É praticamente a última aparição de Harington no filme até o final, em que ele apenas ensaia uma "revelação" que já é sabida por quem lê os quadrinhos da editora ou acompanha as notícias sobre as adaptações cinematográficas.
A partir daí, Eternos faz viagens ao passado e pelo mundo para mostrar o convívio dos (quase) imortais com os humanos e os dilemas originados dessa relação. Visitamos, por exemplo, o Império Gupta, que existiu na Índia entre os séculos 4 e 6; Tenochtitlán, capital dos astecas localizada onde hoje está a Cidade do México, em 1521; e Hiroshima, no Japão, após a explosão da bomba atômica, em 1945. Acompanhamos os conflitos entre os Eternos a respeito de sua influência ou de sua não influência sobre a humanidade. Como se os bilionários do século 21 tivessem desenvolvido uma consciência social, alguns personagens mostram-se dispostos a desobedecer aos Celestiais e interferir no destino do planeta — já pensou o que seria da gente sem fome, sem doença, sem violência? Mas outros sustentam que a vida é um ciclo de criação e de destruição, e que é das guerras que nascem avanços em campos como o da medicina e o da tecnologia.
Ainda que pouco aprofundados, os debates constituem uma das partes mais apetitosas deste caríssimo abacaxi, que é meloso demais quanto aos dramas e aos romances e que logo volta a espetar o espectador com mais do mesmo das produções do UCM: os combates repletos de raios, barulhos e monstros, o clima apocalíptico — que inclui um vulcão em erupção —, tímidas gotas de diversidade sexual (cuide para não piscar na hora do beijinho gay) e uma tempestade de piadas. Tem chiste sobre Bollywood, a indústria cinematográfica indiana, e sobre a dificuldade de encontrar sinal de celular na Amazônia, sobre cerveja de cuspe e sobre batatinhas fritas, sobre Batman e sobre Superman. Sim: a Marvel está tão tranquila no mercado cinematográfico que se permite citar os dois maiores super-heróis da empresa rival, a DC. Aliás, a Marvel é tão segura de seu jogo que termina Eternos lançando iscas para várias novas aventuras — como é tradição, há duas cenas pós-créditos. Uma delas, a mais bobinha, traz a participação de um cantor que virou ator.