Já faz tempo que os filmes de terror refletem sobre questões sociais e políticas (basta lembrar, por exemplo, dos zumbis trazidos à vida por George A. Romero no clássico A Noite dos Mortos-Vivos, em 1968).
Mas essa tendência parece ter se acentuado nos últimos anos, com títulos que abordam temas como racismo, misoginia, relacionamentos tóxicos e o drama dos refugiados.
Feita em alusão ao Halloween, o Dia das Bruxas (aliás, eis uma denominação misógina, né?), no próximo domingo (31), a lista abaixo mostra tanto a versatilidade do gênero quanto o poder simbolizador de seus elementos. Todos os títulos estão disponíveis em plataformas de streaming.
Garota Sombria Caminha pela Noite (2014)
A sucinta sinopse no Google é suficiente para justificar a presença nesta lista: "Uma vampira skatista ataca homens que desrespeitam mulheres em uma cidade iraniana". Escrito e dirigido pela britânica Ana Lily Amirpour e estrelado por Sheila Vand, o filme recebeu três prêmios no Festival de Sitges, na Catalunha, um dos principais do cinema fantástico. (Globoplay, Google Play e YouTube)
A Bruxa (2015)
É do estadunidense Robert Eggers (que depois faria O Farol) este expoente do horror folclórico contemporâneo, prêmio de direção no Festival de Sundance e revelador da atriz Anya Taylor-Joy. Na Nova Inglaterra do século 17, o cineasta acompanha a jornada de uma família cristã excomungada. Isolados à margem de uma floresta, eles vão cair em desgraça quando o filho caçula, um bebê, é sequestrado por uma feiticeira. Eggers inspirou-se em lendas e em relatos reais da época para refletir sobre "o medo do poder feminino e o processo de transformá-lo em algo obscuro e mau", como definiu. No seu caldeirão, A Bruxa mistura temas como o desabrochar da sexualidade, o fanatismo religioso e o caráter repressor da sociedade, cozinhando influências como os filmes de Ingmar Bergman e a pintura O Sabá das Bruxas (1798), de Francisco Goya. (Telecine, Globoplay, Google Play e YouTube)
Invasão Zumbi (2016)
Neste filme de zumbis do diretor sul-coreano Yeon Sang-ho, as criaturas que se multiplicam em um trem para Busan nos lembram: a qualquer momento, as circunstâncias (políticas, econômicas, sanitárias etc.) podem tornar irreconhecíveis as pessoas ao nosso redor. Estão sempre em xeque os laços sociais e afetivos que nos dão identidade e segurança. (Netflix, Google Play e YouTube)
À Sombra do Medo (2016)
Novo nome de Sob a Sombra, dirigido pelo iraniano-britânico Babak Anvari e exibido no Fantaspoa. A história se passa quase toda em um edifício da Teerã da década de 1980, em meio à guerra entre o Irã e o Iraque. As personagens principais são uma mãe e sua filha pequena, Shideh (interpretada por Narges Rashidi) e Dorsa (Avin Manshadi). Quando a cidade começa a ser bombardeada, as duas também passam a ser perturbadas por eventos sobrenaturais. De forma fluida e envolvente, Anvari consegue mesclar o terror de casa mal-assombrada com o drama político, mantendo o espectador tenso até a última cena. (Netflix)
Corra! (2017)
Os casos recentes de negros mortos por policiais brancos nos EUA (George Floyd, Breonna Taylor, Andre Hill, Daniel Prude) recolocaram em evidência a obra de Jordan Peele.
Por meio do terror — também realizou Nós (2019) e coescreveu A Lenda de Candyman (2021), de Nia DaCosta —, o cineasta discute o racismo, a perpetuação da escravidão, a normalização da agressão e as tentativas da sociedade estadunidense de apagar e reinterpretar o próprio passado de exploração e violência. Em Corra!, que valeu a Peele o Oscar de roteiro original, Daniel Kaluuya interpreta um fotógrafo negro que vai visitar a família da namorada, uma jovem branca (Allison Williams). Na propriedade rural dos Armitage (Bradley Whitford e Catherine Keener), ele começa a ficar intrigado com estranhos acontecimentos e atitudes. (Apple TV, NOW, Google Play e YouTube)
O Clube dos Canibais (2018)
É um filme dirigido pelo cearense Guto Parente e ambientado na região de Fortaleza, mas inspira-se em uma história, ou melhor, uma lenda de Porto Alegre e um livro do historiador gaúcho Décio Freitas sobre os Crimes da Rua do Arvoredo. Os linguiceiros do século 21 são o empresário Otávio (Tavinho Teixeira) e sua esposa desocupada, Gilda (Ana Luiza Rios). Trata-se de uma pornochanchada sangrenta sobre uma elite predatória — os pobres só servem para serem comidos, literalmente e também no sentido sexual — e hipócrita: diz mentiras até elas se tornarem verdades, como ilustra a tática adotada pelo deputado Borges (Pedro Domingues), o líder do Clube dos Canibais. (Telecine, Google Play e YouTube)
Midsommar (2019)
Diretor do elogiado Hereditário (2018), o estadunidense Ari Aster transformou uma crise conjugal (a dos personagens interpretados por Florence Pugh e Jack Reynor) em uma história de terror com poucos sustos. Que, em outra subversão, é ambientada sob o sol inclemente de uma comunidade rural na Suécia. O cineasta espalha pistas sobre o que vai acontecer durante uma celebração pagã, convidando a uma revisão do filme, em que a direção de fotografia, a trilha sonora com cordas dissonantes e percussão e a montagem que dilata, distorce e desorienta possibilitam uma experiência sensorial e imersiva. É como se nós também fôssemos os participantes do bizarro culto transcorrido durante o solstício de verão, todos siderados pela mistura de som e fúria, de roupas brancas e trevas interiores, de natureza bucólica e ritos mórbidos, de choque e catarse. (Amazon Prime Video, Google Play e YouTube)
Saint Maud (2019)
Em uma cidadezinha litorânea da Inglaterra, uma jovem enfermeira (papel de Morfydd Clark) acredita falar com Deus, se flagela nas horas vagas e encara como missão religiosa cuidar de uma coreógrafa com câncer (Jennifer Ehle). Estreante em longas, a diretora e roteirista inglesa Rose Glass mistura a dor física com a dor psicológica e explora a relação entre sanidade mental e devoção religiosa. Ela não tem pudores para lançar mão da violência gráfica quando necessária neste filme que acerta em tudo — da duração enxuta à nervosa trilha sonora. (Apple TV, Google Play e YouTube)
O Homem Invisível (2020)
O australiano Leigh Whannell mostra como as histórias de terror podem se adaptar aos tempos. Na sua versão para o clássico escrito por H.G. Wells em 1897, o foco não está no cientista que descobre a fórmula da invisibilidade nem nos dilemas éticos e morais que revestem a trama, como a embriaguez do poder e os riscos trazidos pela impunidade. Pelo olhar da personagem de Elisabeth Moss, o Homem Invisível transforma-se em símbolo dos relacionamentos tóxicos. Logo no começo do filme, acompanhamos Cecilia, na calada da noite, fugir do marido, o gênio da óptica Adrian Griffin (referência ao personagem do romance original), controlador e agressivo. A partir daí, ele passa a assombrá-la. Cecilia grita, mas ninguém acredita nela. Sua sanidade é colocada à prova. "É isso o que ele faz: ele me faz sentir que eu sou a louca da relação!", diz a protagonista, espelhando o drama de muitas mulheres da vida real. (Telecine, NOW, Google Play e YouTube)
O que Ficou para Trás (2020)
Premiado com o Bafta destinado a estreantes, o diretor e roteirista inglês Remi Weekes fez um filme de casa mal-assombrada, de fantasmas e de sustos, mas usa esses elementos clássicos para retratar um drama real e atual. É o dos refugiados, vindos de países em guerra ou onde sofrem perseguição política, religiosa, étnica etc. Em cena, eles são encarnados pelos personagens de Sope Dirisu e Wunmi Mosaku, que escaparam do Sudão do Sul para experienciar o terror num subúrbio da Inglaterra. (Netflix)