Desde que Parasita (2019) se tornou a primeira obra não falada em inglês a vencer o Oscar de melhor filme, os olhos do Ocidente voltaram-se ainda mais ao cinema da Coreia do Sul. O triunfo de Bong Joon-ho, 51 anos, também laureado com a estatueta de diretor e com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, foi o auge de uma produção que, antes, teve como expoentes Park Chan-wook, 57, realizador do hoje clássico Oldboy (2003, fora de catálogo), e Kim Ki-duk (1960-2020), ganhador de oito prêmios em Veneza por Casa Vazia (2004) e Pietá (2012) e do Urso de Prata em Berlim por Samaritana (2004) — os três, infelizmente, não disponíveis no streaming, assim como Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (2003), o eleito pelo público na mostra de San Sebastian, na Espanha.
Trata-se de um cinema não raro desconcertante. Muitas obras trazem protagonistas moralmente ambíguos, mas que nos cativam porque, além de estarem rodeados por gente pior, não querem mais do que nós queremos: uma vida melhor, quem sabe em um lugar quente e com água cristalina, ou algum tipo de justiça. O espectador também pode ficar desnorteado diante da mistura de gêneros. Um mesmo filme pode variar entre o drama romântico, o suspense policial e a crítica social, e alguns acrescentam à receita a comédia de costumes, a ficção científica e o terror sobrenatural.
Se você ainda conhece pouco (ou se quer rever joias orientais), preparei uma lista com 10 filmes disponíveis em plataformas de streaming para fazer uma maratona neste fim de semana.
Invasão Zumbi (2016)
O diretor Yeon Sang-ho, 43 anos, conseguiu se distinguir em um subgênero do terror já bastante povoado, o dos mortos-vivos. As apavorantes criaturas que se multiplicam em um trem para Busan nos lembram que, a qualquer momento, as circunstâncias (políticas, econômicas, sanitárias etc) podem tornar irreconhecíveis as pessoas ao nosso redor. Estão sempre em xeque os laços sociais e afetivos que nos dão identidade e segurança. Combinando essa reflexão a uma tensão desgraçada, só quebrada pela imprevisibilidade das cenas de ataque, Invasão Zumbi conquistou público e crítica. Uma das maiores bilheterias na Coreia do Sul, arrecadou quase US$ 100 milhões mundialmente e tem 94% de avaliação positiva no Rotten Tomatoes. O mesmo cineasta rodou uma sequência, Invasão Zumbi 2: Península (2020), mas nesse filme ele pesou a mão na ação e esqueceu de desenvolver os personagens. Investiu nos efeitos visuais e deixou de lado outras camadas de leitura. Em vez de empatia, provoca apatia, ainda que temperada por um pouco de susto e um pouco de asco. (Invasão Zumbi está em Netflix, Google Play e YouTube)
A Criada (2016)
Diretor dos contemporâneos Zona de Risco (2000), Oldboy (2003) e Lady Vingança (2005), Park Chan-wook resolveu fazer um filme de época em A Criada, que é inspirado em um romance, Fingersmith, ambientado na Grã-Bretanha vitoriana. Estamos na Coreia dos anos 1930, época em que o país (ainda não cindido entre Sul e Norte) estava sob ocupação do Japão. Sook-hee (Kim Tae-ri) é uma jovem contratada para trabalhar como criada na mansão — que mistura o estilo arquitetônico britânico com espaços típicos das residências orientais — onde a rica herdeira japonesa Hideko (Kim Min-hee) mora com seu tio, Kouzuki (Cho Jin-Woong). Este é um sujeito escroto que obriga Hideko a ser protagonista dos saraus literários sobre obras pornográficas nos quais vende livros falsificados como se fossem raridades. Sook-hee, na verdade, é uma vigarista que se infiltra lá para ajudar o galante pilantra Fujiwara (Ha Jung-woo), que se apresenta como conde para, primeiro, desposar Hideko e, depois, interná-la em um hospício e se apossar de sua fortuna.
Repartido em três atos, o roteiro não entrega nada de bandeja ao espectador, que, pouco a pouco, vai sendo seduzido pela alta voltagem erótica do relacionamento entre Sook-he e Hideko, pela narrativa cheia de enigmas e dissimulações e pela suntuosidade visual. Paciente mas vigorosamente, o cineasta mostra que todos estamos sempre encenando, que há um fino véu encobrindo as reais intenções dos personagens e das pessoas, e que a qualquer momento pode haver uma virada de mesa. (Now)
Rastros de um Sequestro (2017)
Quanto menos você souber do filme de Jang Hang-jun, 51 anos, melhor. O que dá para dizer sem ser estraga-prazeres é que começa com a mudança de uma família — pai, mãe e dois filhos de 20 e poucos anos — para uma casa nova. Jin-seok (Kang Ha-neul), o caçula, é quem nos guia — e juntos tomaremos um susto que tão cedo não esqueceremos. Em uma noite chuvosa, ele vê seu irmão, Yoo-seok (Kim Mu-yeol), ser sequestrado. Dias depois, ele reaparece. Mas há algo de estranho no seu comportamento. Se parece que já contei muito, não se preocupe. Muita água ainda vai rolar neste filme que remete a Parasita em uma série de aspectos, como a fotografia e a ambientação, o tom trágico na transição dos gêneros e o peso avassalador das escolhas erradas. (Netflix)
O Motorista de Táxi (2017)
Este ainda não vi, mas se trata do 12º longa-metragem sul-coreano mais assistido no mercado de lá, com 12,1 milhões de ingressos vendidos (a título de curiosidade, o campeão é O Almirante: Correntes Furiosas, de 2014, com 17,6 milhões e indisponível no Brasil). E tem como protagonista Song Kang-ho, ator-fetiche de Bong Joon-ho — estrelou Memórias de um Assassino (2003), O Hospedeiro (2006), Expresso do Amanhã (2013) e Parasita (é o pai da família pobre). O filme de Jang Hoon é baseado em um episódio traumático da história do país, ocorrido em maio de 1980. Kang-ho vive um taxista de Seul que é contratado por um jornalista alemão (Thomas Kretschmann, de O Pianista e Indiana Jones 5) para levá-lo até a cidade de Gwangju. Ao chegarem lá, eles deparam com o lugar tomado pelo governo militar e com os cidadãos, liderados por um grupo de estudantes, reivindicando liberdade. (Google Play e YouTube)
Em Chamas (2018)
Por Em Chamas (Burning), que é baseado em um conto do escritor japonês Haruki Murakami, o diretor Lee Chang-dong, 67 anos, levou o prêmio da crítica no Festival de Cannes. O personagem central é Jongsu (Yoo Ah-in), jovem tímido e solitário que ganha a vida como entregador e sente-se arrebatado ao reencontrar uma vizinha de infância (Jeon Jong-seo). Quando o romance parece engrenar, a garota avisa que está partindo para uma breve aventura na África, de onde volta acompanhada de um rapaz rico e enigmático (Steven Yeun, indicado ao Oscar de melhor ator por Minari). Um triângulo amoroso é esboçado, ao mesmo passo em que o filme passa a transitar pelo suspense e pelo comentário social, discutindo a desigualdade, o desemprego e a falta de perspectivas da juventude. (Now)
Parasita (2019)
A trama de Bong Joon-ho sobre uma família pobre que se infiltra na casa de uma família rica começa como comédia farsesca. Depois, com um misto de fluidez e imprevisibilidade, deriva para o thriller de suspense, para o drama com crítica social, para o terror urbano, até que tudo se embaralha. Essa transição entre gêneros e entre tons (da caricatura à gravidade) é um dos trunfos neste filme sobre a desigualdade. (Telecine, Google Play e YouTube)
Tempo de Caça (2020)
O filme escrito e dirigido por Yoon Sung-hyun, 38 anos, se passa em um futuro próximo, em que a crise financeira derrubou a Coreia do Sul — os cenários são zonas industriais decadentes, favelas e ocupações, bem familiares para o público brasileiro. O protagonista, Jun Seok (Lee Je-hoon), é um jovem que, após três anos de prisão, reencontra os amigos Ki Hoon (Choi Woo-shik, o filho pobre de Parasita) e Jang Ho (Ahn Jae-hong) e elabora um plano: assaltar um cassino clandestino e fugirem todos para um local tipo o Havaí, mais caloroso e colorido do que a realidade fria e cinzenta. Mas eles acabam entrando na mira de um assassino impiedoso (Park Hae-soo, do seriado Manual do Presidiário) — que pode ser encarado como a consciência de Jun Seok de que o sistema não permite ascensão, ou de que, como diz o pai pobre em Parasita, a vida nunca funciona como o sonhado para pessoas como eles ("O melhor plano é não ter planos", afirma Ki-taek no filme oscarizado. "Sem planos, nada pode dar errado. Se algo fugir do controle, não importa").
A estética e o ritmo narrativo são personagens à parte em Tempo de Caça. Em uma cenografia inóspita, com um jogo de luzes que traduz o "sentimento" da cena e uma sonorização opressiva (cada toque no corpo se faz ouvir), a trama, em seu início, é conduzida lentamente. Há um propósito: os laços entre os "ladrões por sobrevivência" precisam estar bem reconstituídos, porque é isso o que pode sustentá-los quando a noite cair sobre eles. (Netflix)
#Alive (2020)
Outro filme sul-coreano de zumbis que acrescentou ao subgênero. No contexto da pandemia, reflete sobre temas como o medo de ser contaminado, o isolamento, a proteção aos entes queridos, a ética das estratégias de sobrevivência, o poder das redes sociais, a necessidade de cooperação, aquilo que nos mantêm agarrados à existência e a esperança por uma cura.
Com direção do estreante Il Cho, #Alive conta com dois jovens e carismáticos atores nos papéis principais: Yoo Ah-in, do filme Em Chamas, e Park Shin-hye, atriz da série Memórias de Alhambra. Ele interpreta Oh Joon-woo, um nativo digital que logo no começo vê-se sozinho no seu apartamento e ameaçado por conta de um vírus que está se alastrando rapidamente, transformando todos em zumbis — que têm as típicas fome incontrolável e incapacidade de comunicação, mas também uma "memória profissional" que será bem explorada pelo roteiro. Shin-hye encarna uma vizinha que surge em um momento-chave do filme. (Netflix)
A Ligação (2020)
Assinado por Lee Chung-yun, 31 anos, este filme de casa mal-assombrada inspira-se em O Chamado (The Caller, 2011), rodado pelo britânico Matthew Parkhill em Porto Rico, para falar sobre os impactos, a curto, a médio ou a longo prazo, de ações individuais e as bifurcações na realidade. A jovem Seo-yeon (Park Shin-hye, de #Alive) volta ao lar de sua infância, na zona rural, quando vai visitar sua mãe, doente em um hospital. Após perder seu celular, encontra na casa da família um telefone antigo e recebe uma ligação desesperada de uma mulher que diz estar sendo vítima de torturas exorcizantes de sua mãe. A partir daí, a protagonista passa a se comunicar com Young-sook (Jeon Jong-seo, de Em Chamas), e as duas descobrem que têm a mesma idade, 28 anos, e que estão na mesma casa, mas separadas pelo tempo: a primeira, em 2019, a segunda, em 1999. (Netflix)
Noite no Paraíso (2020)
Este eu também não vi ainda, mas entra na lista por ser uma das mais recentes estreias no Brasil. Lançado no Festival de Veneza do ano passado, o filme escrito e dirigido por Park Hoon-jung, 46 anos. A sinopse diz o seguinte: escondido, após uma tragédia, nas paisagens vulcânicas da ilha de Jeju, ao sul do país, um gângster injustiçado (Eom Tae-goo) se envolve com uma mulher (Jeon Yeo-bin) que tem seus próprios demônios. (Netflix)
Torça para voltarem a cartaz
Um Dia Difícil (2014): dirigido por Kim Seong-hun, 50 anos, é um thriller violento com alívio cômico. Em parte por causa do desempenho de Lee Sun-kyun (o pai rico de Parasita) como o protagonista, um policial cínico e corrupto. Em parte pelas encrencas nas quais ele vai se meter desde que, ao voltar do velório da mãe, atropela um mendigo e resolve enterrá-lo no mesmo caixão materno. Em parte pelo vilão assumidamente caricato — mas absolutamente intimidador — encarnado por Cho Jin-woong. Em parte pelas cenas de ação, boladas com um senso de humor macabro digno dos desenhos animados do Pica-Pau, de Tom & Jerry e do Papa-Léguas.
The Witness (2018): o roteiro pode ser simples, mas a crítica social é bastante contundente. O diretor Cho Kyu-jang, 44 anos, narra a história de Sang-hoon (Lee Sung-min), um homem que recém se mudou para um prestigiado condomínio na companhia da esposa e da filha pequena. A altas horas de uma noite, ele ouve o grito de uma mulher e vai até a janela do apartamento, de onde testemunha uma violenta agressão. Sang-hoon pensa em chamar a polícia, mas fica intimidado quando percebe que o agressor fez contato visual. A partir daí, o personagem principal passa a ser caçado pelo bandido — que não deixa de ser uma representação de sua própria culpa. The Witness nos pergunta: se você testemunhasse um crime, mas fosse visto pelo bandido, o que faria? Em uma sociedade individualista e regida pelas aparências, como agiríamos se alguém gritasse socorro? A cena final, que poderia acontecer em qualquer complexo de edifícios brasileiro, é muito marcante.