Lupin é legal, mas Criminal é sensacional. Trata-se de outra série policial da Netflix criada por George Kay, o inglês responsável pela modernização do ladrão de casaca surgido nos livros do escritor francês Maurice Leblanc (1864-1941). Interpretado pelo carismático Omar Sy, o personagem vive novas aventuras a partir desta sexta-feira (11), quando estreia a segunda parte.
Kay não é o único pai de Criminal, que tem irmãos espalhados pela Europa. Ele desenvolveu a série ao lado de Jim Field Smith, diretor dos sete episódios britânicos (três na primeira temporada, em 2019, e quatro na segunda, em 2020). Também houve versões na Alemanha, na Espanha e na França, todas com equipes locais de roteiristas, diretores e atores.
É o que se chama de antologia: cada episódio pode ser visto separadamente e até na ordem que você desejar, porém, vale avisar que há desdobramentos de um para o outro.
Criminal é, também, uma série sobre crimes que não mostra crimes. Tudo se passa dentro de uma delegacia, principalmente na sala onde policiais interrogam o suspeito da vez.
Portanto, os diálogos são a força motora, mas isso não significa que a série seja parada. Os personagens podem estar sentados, na maior parte das cenas, só que o corpo fala: a câmera flagra suas reações — o desconforto, o descaso, o descontrole, o desespero. A montagem se encarrega de emprestar dinamismo, sem afobação: os cortes dão tempo suficiente para os atores, literalmente, respirarem. É envolvente e fascinante.
O elenco e o conteúdo, pelo menos em Criminal: Reino Unido (as outras versões ainda não assisti), estão à altura da forma. Atriz da longeva novela Coronation Street — no ar desde 1960! —, Katherine Kelly, 41 anos, faz a chefe dos investigadores, Natalie Hobbs. Nick Ingleby (o Nick da quarta temporada de Line of Duty) interpreta o detetive Tony Myerscough. A equipe policial inclui, entre outros, Vanessa Warren (interpretada por Rochenda Sandall, a McQueen do sexto ano de Line of Duty), Hugo Duffy (Mark Stanley, o Grenn de Game of Thrones) e Paul Ottager (Nicholas Pinnock, que foi o ex-marido da protagonista do seriado Marcella). Os papos sobre amenidades e até os flertes que ocorrem nos bastidores não constituem um corpo estranho diante da gravidade dos casos, pelo contrário: ajudam a entender o comportamento desses personagens quando estão na sala de interrogatório.
Esse ambiente funciona como um palco para os convidados especiais que, a cada episódio, assumem a posição do suspeito. No primeiro episódio, David Tennant, das séries Dr. Who, Good Omens e Jessica Jones, encarna um médico acusado de ter estuprado e assassinado sua enteada adolescente. Hayley Atwell, a Peggy Carter do universo cinematográfico Marvel, faz uma mulher que teria envenenado o namorado violento da sua colega de apartamento. Indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por Hotel Ruanda (2004) e vista recentemente em Ratched (2020), Sophie Okonedo abre a segunda temporada, que traz as participações de Kit Harington (o Jon Snow de GoT, aqui num registro nada heroico nem honrado) e Kunal Nayyar (o Raj do seriado cômico The Big Bang Theory, aqui mostrando talento para o drama).
Se os suspeitos são ou não culpados é praticamente um mero detalhe. O que conta em Criminal: Reino Unido é o como os detetives chegam ao desfecho: as indagações, as deduções, as interações, as provocações e as revelações (algumas delas feitas pelos próprios policiais) acabam por suscitar debates acalorados também na sala dos espectadores. E os temas envolvidos nos crimes são, por si só, explosivos — da violência doméstica que pode nunca vir a público ao drama dos imigrantes ilegais na Europa. Em duas ocasiões, os criadores George Kay e Jim Field Smith acabaram chamuscados pelo fogo que acenderam.
OS PRÓXIMOS PARÁGRAFOS CONTÊM SPOILERS.
Embora cada episódio de Criminal: Reino Unido funcione de modo independente dos outros, há uma reincidência no mínimo incômoda na segunda temporada. Em uma das tramas, descobre-se que uma mulher havia forjado provas contra supostos homens que agiam como predadores sexuais de crianças. Em outra, ainda que com visível contragosto, os detetives concluem que o chefe de um escritório, acusado de estuprar uma subordinada, havia sido alvo de um golpe. Mesmo que fique claro para o espectador que o sujeito em questão é um escroto, Kay e Smith, em nome da reversão de expectativa, optaram por apostar na exceção à regra e desacreditar as vítimas em geral.
— Parece que estamos retrocedendo 30, 40, 50 anos toda vez que algo assim vai ao ar — disse, ao site Digital Spy, Nicola Mann, da organização Women Against Rape (mulheres contra o estupro), cuja sigla é WAR (guerra, em inglês). — Isso alimenta a narrativa distorcida de que todas as mulheres mentem porque são amargas, querem vingança ou querem compensação.
Katie Russell, porta-voz de outra organização, a Rape Crisis England & Wales, acrescentou, comentando a cena em que uma advogada afirma que "hematomas por si só nunca podem provar o estupro" já que "Sempre há uma maneira de sustentar, por mais grave que seja, que o hematoma é resultado de uma relação sexual consensual":
— Sabemos que um dos motivos pelos quais as vítimas não denunciam está o medo de não serem acreditadas e de serem tratadas com suspeitas pelo processo de justiça criminal. Retratos como esse irão, sem dúvida, reforçar esses medos. Por um lado, você poderia argumentar que isso é apenas ficção. Que mal pode fazer? Mas, na verdade, sabemos que filmes e séries têm papéis importantes a desempenhar na compreensão das pessoas sobre vários tópicos. Muitos jurados, porque eles são, obviamente, pessoas comuns como você e eu, são influenciados por esses mitos sociais, esses mitos prejudiciais de culpabilização das vítimas que são tão difundidos na sociedade e na mídia. Quando estão lidando com algo tão sério como violência sexual, os criadores do programa têm uma responsabilidade social.
Atriz que interpreta a chefe dos detetives em Criminal: Reino Unido, Katherine Kelly não se furtou de falar à imprensa britânica sobre a polêmica. Ela entende que o episódio tem um caráter "pedagógico":
— Ouvimos regularmente notícias sobre esses tipos de casos, que não estão recebendo as condenações e não estão chegando aos tribunais. Nosso episódio esclarece um pouco mais por que as coisas são assim e como é difícil obter algumas evidências. Como você pode interpretar mal mensagens de texto, por exemplo. Eu achei (a solução do caso) uma coisa realmente difícil de aceitar. Porque não deveria ser assim, deveria? Mas é.