Estou lendo uma história em quadrinhos recém lançada que é sobre os relacionamentos amorosos contemporâneos, mas que também ajuda a entender o comportamento dos espectadores de filmes.
Em A Rosa Mais Vermelha Desabrocha, a sueca Liv Strömquist (a mesma de A Origem do Mundo: Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva Vs. O Patriarcado) discorre sobre por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia. Dosando leveza e profundidade, citando filósofos como o esloveno Slavoj Zizek e o sul-coreano Byung-Chul Han e astros como Beyoncé e Leonardo DiCaprio, a quadrinista mostra como a sensação do fall in love (literalmente, cair no amor) vem sendo substituída por uma visão consumista. A racionalidade subjuga o romantismo, escolhemos uma pessoa como se fosse uma mercadoria: queremos que ela venha sem defeitos. Rejeitamos surpresas e incertezas.
No âmbito cinematográfico, isso se reflete na quantidade de sites e canais no YouTube que se dedicam a explicar o final de um filme. Geralmente, ocorre com títulos de suspense ou terror — pode ser o inglês O que Ficou para Trás, o sul-coreano A Ligação, o norte-americano Fuja... —, mas também vale para romances cerebrais, como Estou Pensando em Acabar com Tudo, e aventuras de ficção científica, como Tenet. Se existe oferta, é porque existe demanda: uma parcela considerável do público age como se estivesse comprando um sofá, e não apreciando uma obra de arte.
Não tolera a multiplicidade de interpretações — que, no terreno dos relacionamentos, equivale à força estranha e misteriosa do amor, capaz de nos tirar o chão (olha o "fall in love" aí). Não aceita supostas imperfeições — que, no seu somatório, conferem características únicas, sui generis a um filme.
Retomando a discussão de Liv Strömquist e dos autores referenciados em A Rosa Mais Vermelha Desabrocha (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 69,38, tradução de Kristin Lee Garrubo), o narcisismo extremo da sociedade capitalista e da era das redes sociais provocou o desaparecimento do outro. Não buscamos o outro propriamente dito, mas "espelhos que confirmam o sujeito narcisista em seu ego". Ou seja, evitamos o diferente e assistimos a mais do mesmo; nos aboletamos em uma zona de conforto em vez de nos permitirmos mergulhar no desconhecido para encontrar aquilo que o pensador francês Roland Barthes definiu como "inclassificável, de uma originalidade sempre imprevista" — lembrem o que todos dizem quando estão apaixonados, como aponta a autora sueca: "Ele é único!" "Não há ninguém como ela!" "Você é a única pessoa do mundo para mim!".
Por coincidência, a HQ de Liv Strömquist chegou as minhas mãos às vésperas da abertura do Fantaspoa, o Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, em cartaz até domingo (18), gratuitamente, na plataforma de streaming Wurlak. Daí que fiquei refletindo sobre as questões do livro enquanto via filmes que, justamente, podem se encaixar na definição de Barthes citada pela quadrinista. Difícil dizer em que gênero se classifica, por exemplo, o japonês Dancing Mary, que gira pelo terror, pela comédia, pela ação à la samurai, pelo drama existencialista. Difícil prever os passos de um filme como o canadense A Risada, que, apesar desse nome, começa com uma cena de dor e de morte em um quarto de hospital, que é sucedida por uma cena de dança estrelada por médicos, enfermeiros e pacientes, que, por sua vez, é sucedida por uma cena de massacre em uma fictícia guerra civil. Difícil encontrar romance mais original do que o de Jumbo, em que uma jovem introspectiva se apaixona — e é correspondida! — por um brinquedo novo do parque de diversões onde ela trabalha.
Os filmes do Fantaspoa não são perfeitos, claro (embora o iraniano O Grande Salto chegue bem perto), mas, de modo geral, cumprem com brilho o papel de fugir do convencional — constituem-se em um "outro" cinematográfico. Se vamos nos apaixonar ou não, é outra história, mas eles oferecem fartas doses de estranheza e mistério para atiçar nossos pensamentos e nossas emoções.
E um punhado dos títulos do festival propõem quebra-cabeças narrativos que justificariam uma matéria do tipo "final explicado". Vide o próprio A Risada ou Marionete, do holandês Elbert van Strien, sobre uma psiquiatra infantil que se muda dos Estados Unidos para a Escócia, onde traumas de seu passado começam a se misturar com os macabros desenhos premonitórios de um paciente de 10 anos. Há também Córtex, do alemão Moritz Bleibtreu, em que o protagonista sofre de hiposonia e não consegue mais distinguir entre sonhos e realidade, e Mister Limbo, do norte-americano Robert G. Putka, sobre dois homens, estranhos um ao outro, que acordam em um deserto sem saber como foram parar lá — sequer lembram seus próprios nomes.
Mas nenhum filme (pelo menos entre os 28 que eu já vi) exige mais explicação — ou, por outro lado, mais entrega — do que o indiano Rabo de Cavalo (Kuthiraivaal, 2021).
Trata-se do longa-metragem de estreia do roteirista G. Rajesh e dos diretores Manoj Leonel Jason e Shyam Sunder. A sinopse já dá conta dos desafios lançados ao espectador: "Um bancário alcoólatra tem de resolver um mistério: por que certo dia ele acordou com um rabo de cavalo? Na tentativa de descobrir, embarca em uma viagem por sonhos, ilusões e memórias, encontrando diversos personagens enigmáticos e peculiares".
Eu tive de assistir duas vezes a Rabo de Cavalo, e mesmo assim não consegui amarrar todos os fios (trocadilho intencional). Não é meu propósito, nesta coluna, dar spoilers ou antecipar muitas interpretações, mas, sim, introduzir elementos dessa dupla aventura: a do protagonista e a do espectador.
O rabo de cavalo que apareceu às costas do personagem encarnado por Kalaiyarasan só é visto por ele e por nós. Mas é o suficiente para influenciar a percepção do sujeito sobre como os outros o enxergam. Quer dizer, é menos uma anomalia física do que uma condição psicológica. Falando nisso, o protagonista é chamado por todos de Saravanan, mas se apresenta como Freud — isso mesmo, o pai da psicanálise.
Os movimentos de câmera, que inclinam os planos, e os ângulos empregados pela direção de fotografia acentuam o estado de desorientação e borram as fronteiras entre o que é real e o que é sonho, ilusão ou memória. Em um instante, Saravanan/Freud pode estar em um quiosque na rua, de onde acaba se juntando a uma anciã em um cenário florestal.
O som também é usado para ilustrar a perturbação mental do personagem e o tênue limite entre os territórios da trama. Os concertos de Vivaldi que Saravanan/Freud escuta aleatoriamente em casa ressurgem no seu trabalho, tirando-o do prumo. A narração em espanhol do jogo de futebol a que assiste desatentamente na sua sala de estar reaparece para pontuar uma divertida sequência de ação.
Na interação com os coadjuvantes, o protagonista vai colhendo pistas (uma garota diz: "O que eu perdi na memória eu busco nos sonhos"), mas ao mesmo tempo abre portas para mais enigmas — o que inclui uma morte em circunstâncias muito esquisitas: um homem foi encontrado com 200 seringas espetadas no corpo. Entre os interlocutores de Saravanan/Freud, está o vizinho Babu, dono de um cachorro pug batizado de Sapo, e um professor de matemática que gosta de lidar com o subconsciente e que cita Lacan (psicanalista francês que repensou Freud — no caso, o verdadeiro). Em um porão onde rabiscou todas as paredes com cálculos, fórmulas e equações, o matemático diz ao personagem principal que, se ele descobrir o que é o rabo de cavalo, encontrará a eternidade. E também sugere haver alguma explicação de cunho amoroso, já que o cavalo "é símbolo do sexo".
Mais detalhes não vou dar, mas posso dizer que haverá uma longa passagem em uma zona rural que envolve uma família de videntes, um pai agressivo, a idolatria a M.G.R. (um ator de cinema que se tornou ministro-chefe de Tamil Nadu, Estado ao sul da Índia), um poço onde o reflexo da pessoa é capaz de atacá-la e um diálogo absurdamente lindo e profundo sobre "subir a montanha para tocar o céu". E posso prometer que, depois de uma jornada árdua e não raro confusa, o final de Rabo de Cavalo será epifânico.