O sul-coreano A Ligação e o espanhol Vozes, que estrearam no final de novembro, formam com o inglês O Que Ficou para Trás, lançado nos últimos dias de outubro, uma trilogia da Netflix sobre casas mal-assombradas. Os três filmes de terror são assinados por diretores estreantes, que revelam talento para criar imagens potentes enquanto contam histórias envolventes e carregadas de espanto, embora um deles abrigue clichês e cutuque de forma ambígua um vespeiro histórico, e outro tenha deixado a fresta um tantinho aberta no final (dizer qual é qual seria spoiler).
Em todos os títulos, os personagens principais estão às voltas com um endereço novo. Em O que Ficou para Trás (His House), de Remi Weekes, o casal Bol (interpretado pelo britânico Sope Dirisu) e Rial (a nigeriana Wunmi Mosaku, a Ruby do seriado Lovecraft Country) são refugiados da guerra civil no Sudão do Sul que, ao conseguirem asilo político, mudam-se para uma casinha precária em um subúrbio da Inglaterra.
Em Vozes (Voces), de Ángel Gómez Hernández, Daniel (Rodolfo Sancho) e Sara (Belén Fabra) vivem de consertar, redecorar e revender casas, como a mansão onde os conhecemos.
Em A Ligação (Kol), dirigido por Lee Chung-yun e inspirado no filme The Caller (2011), de Matthew Parkhill, a jovem Seo-yeon (Park Shin-hye, do recente filme de zumbi #Alive) volta ao lar de sua infância, na zona rural, quando vai visitar sua mãe, doente em um hospital.
Os diretores não demoram para apresentar os elementos perturbadores. Bol e Rial deparam com fantasmas e eventos sobrenaturais, assim como Eric (Lucas Blas), o filho de nove anos do casal espanhol, ouve vozes atrás das portas e das paredes.
No filme da Coreia do Sul, Seo-yeon, após perder seu celular, encontra na casa da família um telefone antigo e recebe uma ligação desesperada de uma mulher que diz estar sendo vítima de torturas exorcizantes de sua mãe. A partir daí, a protagonista passa a se comunicar com Young-sook (Jeon Jong-seo, do thriller Em Chamas), e as duas descobrem que têm a mesma idade, 28 anos, e que estão na mesma casa, mas separadas pelo tempo — a primeira, em 2019, a segunda, em 1999.
Para lidar com as assombrações, os africanos Bol e Rial só podem contar com eles próprios — revelar às autoridades o que está acontecendo colocaria em risco a obtenção da cidadania britânica. O espanhol Daniel, a certa altura, acaba convocando um veterano especialista em paranormalidade, que traz a tiracolo sua filha, Ruth (Ana Fernández, a Carlota do seriado As Telefonistas). Em A Ligação, as duas personagens ajudam uma à outra: Se-yeon dá um jeito de salvar Young-sook, e esta empenha-se em alterar um episódio traumático da vida da primeira.
As consequências, em cada filme, são como bolas de neve que podem se transformar em pesos mortíferos. Em maior ou menor grau, os diretores lançam pistas para montarmos os quebra-cabeças — no terror espanhol, o quadro final pode ser antevisto pelo público tarimbado, mas ainda assim há movimentos desnorteadores. Há uma conexão extra entre O que Ficou para Trás e Vozes, porque ambos recorrem ao passado — recente ou remoto — dos países de origem de seus protagonistas, refletindo, em um microcosmo, sombrias heranças coletivas. A Ligação, por sua vez, está totalmente conectada a uma característica do cinema sul-coreano contemporâneo: a de mostrar os impactos, a curto, a médio ou a longo prazo, de ações individuais (mesmo que motivadas por um contexto social) e as bifurcações na realidade, como visto tanto no oscarizado Parasita quanto nos policiais Um Dia Difícil, Rastros de um Sequestro, The Witness e Tempo de Caça.
Se eu fosse escolher apenas um adjetivo para classificar cada título, diria que Vozes é o mais assustador. O diretor Ángel Hernández demonstra habilidade na construção visual das cenas e, por quebrar cedo expectativas em relação aos personagens, nos deixa menos preparados para o que vem pela frente. Pena que perde a mão e até a cabeça no terço final, consideravelmente ofensivo à inteligência do espectador e à memória de vítimas de um período violento da história da Espanha.
O que Ficou para Trás é o mais profundo. É um filme de casa mal-assombrada, mas suas paredes têm tijolos feitos de um problema muito real. É um filme de fantasmas, mas esses personagens não são do passado - representam uma tragédia atual e urgente, a dos refugiados, sejam originários do Sudão do Sul, da Síria, do Afeganistão, do Iraque, de Mianmar, da Palestina ou de qualquer outra nação fraturada por perseguições étnicas, religiosas ou políticas. São lugares onde a luta pela sobrevivência não raro suscita medidas extremas. Lateralmente, o cineasta Remi Weekes toca no pesadelo da xenofobia e do racismo.
A Ligação é o mais intrigante. Embora seja um conflito recorrente na ficção científica, na sua versão terror o jogo de ação no passado e reação no presente é muito bem engendrado, dramática e visualmente, por Lee Chung-yun. Ficamos vidrados e aflitos enquanto o sangue vertido em 1999 escorre em 2019.
Recomendo os três filmes, mas se falta tempo a vocês, a ordem seria O que Ficou para Trás (pra ontem), A Ligação e, nem que seja só para tomar susto e ficar indignado com a solução (não o epílogo, que, apesar de gasto, funciona), Vozes.