Leonardo DiCaprio já tinha fama e respeito quando fez O Aviador (The Aviator, 2004), em cartaz desde domingo (1) no catálogo da Netflix. Tinha concorrido ao Oscar de coadjuvante, aos 19 anos, por Gilbert Grape: Aprendiz de Sonhador (1993), contracenado com Sharon Stone — então a estrela de Hollywood — no faroeste Rápida e Mortal (1995), recebido o Urso de Prata no Festival de Berlim por Romeu + Julieta (1996), ajudado a arrastar multidões ao cinema em Titanic (1997) e disputado o Globo de Ouro de melhor ator duas vezes — pelo náufrago romântico e pelo golpista patológico de Prenda-me Se For Capaz (2002).
Nesse meio tempo, também foi "premiado" com o famigerado Framboesa de Ouro, na categoria pior dupla, pelos gêmeos de O Homem da Máscara de Ferro (1998), mas deixemos isso pra lá. O que importa é que, com O Aviador, um projeto pessoal seu, DiCaprio alçou voos mais altos. O filme dirigido por Martin Scorsese — a segunda de suas cinco parcerias com o cineasta — rendeu sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator (perdeu para Jamie Foxx, de Ray).
Hoje, às vésperas de comemorar 46 anos, em 11 de novembro, o astro tem uma estatueta dourada — por O Regresso (2015) — e mais três disputas no currículo: Diamante de Sangue (2006), O Lobo de Wall Street (2013) e Era Uma Vez em Hollywood (2019). No Globo de Ouro, concedido pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, tornou-se figura mais assídua. Venceu como melhor ator em drama por O Aviador e O Regresso e em comédia ou musical por O Lobo de Wall Street, e concorreu por Diamante de Sangue, Os Infiltrados (2006), Foi Apenas um Sonho (2008), J. Edgar (2011), Django Livre (2012, como coadjuvante) e Era Uma Vez em Hollywood.
Premiado com os Oscar de atriz coadjuvante (Cate Blanchett), fotografia (Robert Richardson), edição (Thelma Schoonmaker), direção de arte e figurinos, O Aviador também brigou nas categorias de melhor filme, diretor, roteiro original (John Logan), ator coadjuvante (Alan Alda) e edição de som. As quase três horas de duração do épico sobre o multimilionário americano Howard Hughes (1905-1976) passam, literalmente, voando. Não que aconteça uma guinada de Scorsese para o gênero da aventura escapista, pousando a câmera em cenas de ação. A trepidação vem da luta contra os demônios interiores do personagem.
Esse extenuante conflito é prenunciado na bela de abertura, durante a epidemia de cólera de 1913 em Houston, no Texas. Sob iluminação que remete a filmes bíblicos (a religiosidade é marca de Scorsese), um menino é banhado pela mãe, que lhe fala sobre "terríveis germes". É ali que o pequeno Howard aprende uma espécie de mantra, estranhamente atual nos tempos de coronavírus: soletrar a palavra "quarentena".
O filme então pula para 1927, quando Hughes (já na pele de DiCaprio), após herdar do pai uma empresa de brocas para prospecção de petróleo, gasta a fortuna filmando no deserto Anjos do Inferno. Às vésperas da quebra da Bolsa de Valores de Wall Street, um guri de 20 e poucos anos inventa o conceito de superprodução hollywoodiana: foram três anos de filmagem, que consumiram US$ 4 milhões e as vidas de três pilotos.
Mas o voo mais alto de Hughes é mesmo nos céus. Piloto audaz e empresário dinâmico, bate recordes de velocidade, projeta aeronaves e adquire o controle acionário da TWA. Surge o outro vértice do filme, o combate do protagonista contra o presidente da PanAm (Alec Baldwin) e seu testa-de-ferro, o senador Ralph Brewster (Alan Alda, pusilânime).
Entre um filme e um avião, Hughes seduz atrizes: Jean Harlow (encarnada pela cantora Gwen Stefani), Ava Gardner (Kate Beckinsale) e Katharine Hepburn (Cate Blanchett). O romance entre Hughes e Hepburn inclui um passeio noturno sobre Los Angeles, que culmina em um paralelismo de montagem: à cena em que Howard desliza a mão nas costas nuas de Katharine, sucede-se uma em que ele alisa a superfície prateada de seu novo avião.
Orçado em US$ 100 milhões, O Aviador é um espetáculo grandioso. Detalhista, Scorsese encarregou o desenhista de produção Dante Ferretti de reproduzir o tempo e os lugares de Hughes — como o clube Cocoanut Grove, de decoração em rococó marroquino e repleto de palmeiras, onde o ótimo cantor canadense Rufus Wainwright faz uma participação. Ao fotógrafo Robert Richardson e ao time de efeitos especiais, coube a tarefa de emular a evolução do sistema Technicolor.
A mescla de miniaturas tradicionais com tecnologia digital responde pelas tensas cenas de acidentes aéreos. Aliás, consta que as sequências de Anjos do Inferno eram tão ousadas que, por segurança, não puderam ser repetidas com pilotos e aviões de verdade em O Aviador.
A maior crítica feita a O Aviador é quanto ao período abarcado: de 1927 a 1947. O filme se concentra apenas na glória de Hughes, omitindo sua longa e doentia reclusão, o antissemitismo e as inclinações fascistas. Mas ainda assim Scorsese pinta um retrato amplo e sombrio de seu biografado — por extensão, também dos Estados Unidos.
— Meu personagem — disse o cineasta em entrevistas — é um visionário que queria voar como um deus, mas que trazia nos genes todos os elementos de sua decadência.
Com os arroubos de herói (quixotesco, em verdade), sob o empolgante leitmotiv da música de Howard Shore, convivem a ganância, a insensibilidade, a corrupção, o desprezo pelo coletivo, a loucura, as fobias e os sintomas de um transtorno obsessivo-compulsivo. O epílogo não é uma ode ao Hughes empreendedor. A repetição da frase "The way of the future" (O caminho do futuro) soa menos como um novo mantra do que como premonição: tal como o Ícaro da mitologia grega, Hughes vai pagar o preço por voar perto demais do sol.