Apesar de muitos obstáculos, Homem-Aranha: Sem Volta para Casa (Spider-Man: No Way Home, 2021) conseguiu me tocar a ponto de eu chorar. Duas vezes.
O primeiro obstáculo é de ordem subjetiva — não se trata do meu super-herói favorito. O segundo é bem objetivo: o filme do diretor Jon Watts que entrou em cartaz nos cinemas na quinta-feira (16) foi todo constituído para surpreender o público, mas a expectativa gerada pela terceira aventura solo do personagem interpretado por Tom Holland no Universo Cinematográfico Marvel (MCU, na sigla em inglês) teve como efeito cascata um mar de especulações e de revelações. Mesmo fugindo de trailers e evitando clicar em links, acabei bastante molhado. Se você nem chegou a ser atingido pelas violentas ondas trazidas por sites e redes sociais, fique tranquilo porque, por enquanto, não vou dar spoilers (avisarei quando achar inevitável).
Os próximos obstáculos são decorrentes dessa expectativa monstra. A pré-venda de ingressos bateu o recorde de Vingadores: Ultimato (2019), ou seja, as salas de cinema estão lotadas. Até nas sessões das 14h, afinal, uma multidão que se identifica com o protagonista adolescente já está em férias escolares. Por mais que haja protocolos de segurança sanitária, uma aglomeração em tempos de pandemia faz despertar um sentido de alerta. E potencializa outros incômodos: mais gente pode chegar atrasada, atrapalhando a concentração (aconteceu na minha sessão), mais gente pode estar odorizando o ambiente com o cheiro de hambúrguer e batata frita (aconteceu nas poltronas atrás de mim), mais gente pode passar o filme inteiro conversando (aconteceu do meu lado), mais gente pode gritar diante de aparições, diálogos ou cenas marcantes (aconteceu o tempo todo, mas devo admitir que me divirto e me comovo com esse engajamento da plateia).
A ironia é que as duas horas e meia de Sem Volta para Casa começam justamente mostrando o lado negativo da popularidade. O roteiro de Chris McKenna e Erik Sommers retoma os instantes finais de Longe de Casa (2019), igualmente escrito pela dupla e realizado por Watts, quando o vilão Mysterio (Jake Gyllenhaal) não apenas revelou a identidade secreta do Homem-Aranha — também fez a caveira de Peter Parker. Evidentemente, a visão do Amigão da Vizinhança como um terrorista é comprada pelo editor do Clarim Diário, J. Jonah Jameson, um notório espalhador de notícias falsas deliciosamente interpretado por J.K. Simmons. O sensacionalismo transforma a vida de Peter em um caos, surpreendentemente embalado por I Zimbra, uma canção de 1979 da banda Talking Heads, e visualmente bem traduzido por uma sequência sem cortes e com movimentos rápidos de câmera no apartamento da Tia May (Marisa Tomei), onde nosso herói tenta se refugiar e proteger a amada MJ (Zendaya).
Parece que só um passe de mágica seria capaz de resolver o quiproquó, portanto, Peter procura o Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch). Mas isso acaba abrindo as portas do chamado Multiverso.
Eis a senha para dois recados importantes. O primeiro é que a partir daqui pode haver spoilers no texto.
Repetindo: a partir daqui pode haver spoilers no texto.
O segundo é que você corre o risco de ficar boiando em Sem Volta para Casa se não tiver assistido às franquias anteriores do Homem-Aranha: a trilogia dirigida por Sam Raimi e estrelada por Tobey Maguire entre 2002 e 2007 e os dois filmes assinados por Marc Webb e protagonizados por Andrew Garfield em 2012 e 2014.
Ao lançar mão do Multiverso, o diretor Jon Watts fez um filme extremamente fiel a características dos quadrinhos da Marvel e ao espírito do Homem-Aranha. O resgate de personagens e de tramas do passado é uma marca da editora, que no cinema vem espelhando o conceito de cronologia norteador dos gibis: uma aventura puxa a outra, o que aconteceu lá atrás tem consequências lá na frente, tudo está interligado. Mas Sem Volta para Casa vai além. Expande para o cinema a ideia de que existem dimensões paralelas, outras linhas temporais, versões alternativas da História e do mundo — algo que, vale frisar, a série Loki, no Disney+, revelou em junho, preparando o terreno para os passos futuros do MCU.
Reforço o aviso sobre spoilers antes de prosseguir.
Como trailers já tinham deixado claro, Sem Volta para Casa promove o retorno de vilões como Duende Verde (Willem Dafoe, aproveitando cada momento com seu sorriso insano e sua dicção peculiar), Doutor Octopus (Alfred Molina) e Electro (Jamie Foxx). Como era especulado, o ator Charlie Cox, que interpretou o Demolidor nos seriados da Netflix, está oficialmente inserido no Universo Cinematográfico Marvel. E — último alerta sobre spoilers— como era aguardado, Tobey Maguire e Andrew Garfield juntam-se a Tom Holland.
A escalação desses personagens e desses atores é uma demonstração simultânea de carinho e de força da Marvel. Por um lado, a empresa afaga o público que acompanhou as encarnações prévias do Aranha. Por outro, atesta sua segurança no próprio taco ao não se furtar de jogar holofotes para obras de outras produtoras.
O elenco vitaminado de mocinhos e bandidos pressupõe cenas de ação inesquecíveis, certo? Aí está mais um obstáculo de Sem Volta para Casa. Faço minhas as palavras do colega Carlos Redel em GZH: as sequências ora são escuras demais, ora têm enquadramentos pouco criativos. Nada empolga.
Mas Jon Watts compensa a falta de tato para a ação com um ouvido aguçado para as angústias e os anseios de um adolescente como Peter Parker, virtude que ele já vinha exibindo desde o início da trilogia, De Volta para Casa (2017). Se em Longe de Casa vimos Peter Parker lidando com o desejo de aprovação junto a seus pares e o sentimento de inadequação no mundo dos adultos, em Sem Volta para Casa ele será obrigado a amadurecer. A entender o princípio clássico do super-herói criado em 1962 pelo roteirista Stan Lee e o desenhista Steve Ditko: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.
Finalmente, o Peter interpretado por Tom Holland ficará em pé de igualdade com o Peter de Tobey Maguire e o de Andrew Garfield. Talvez nem tanta igualdade: o filme é muito engraçado ao brincar com as diferenças entre as três versões cinematográficas do personagem. A propósito, as comparações evidenciam acertos e erros dessas concepções, emocionam e fazem sobressair o talento — tanto dramático quanto cômico — de Garfield (não à toa, é o único que já disputou o Oscar, por Até o Último Homem, de 2016, e deve concorrer de novo em 2022, pelo musical Tick, Tick... Boom!).
As interações também permitem a Sem Volta para Casa discutir a essência do Homem-Aranha e retratar, talvez como nenhum outro filme de super-herói tenha feito, a noção de legado, tão cara à Marvel. Ao mesmo tempo, este terceiro segmento transcende o gênero ao trabalhar o mítico tema da segunda chance. Faz isso com todas as letras — o Peter de Holland diz que escolheu um símbolo dela, a Estátua da Liberdade, como cenário do embate final — e com imagens poderosas e evocativas: desabei no choro, pela segunda vez, quando um dos Aranhas se viu diante da sua segunda chance.