Lançado pela Netflix na sexta-feira (5), Malcolm & Marie é um exemplo de filme da era coronavírus. Não pelo tema, mas pelas condições de produção. Rodado durante a pandemia, tem apenas dois atores em cena — os norte-americanos John David Washington (o Protagonista de Tenet) e Zendaya (a MJ da atual franquia Homem-Aranha) — e um único cenário: uma casa, enorme, onde a enxuta equipe comandada pelo diretor e roteirista Sam Levinson ficou de quarentena enquanto trabalhava.
A ideia partiu de Levinson e Zendaya, parceiros na série da HBO Euphoria (2019), que valeu a ela o prêmio Emmy de melhor atriz. Impedidos de tocarem a segunda temporada, por causa das restrições sanitárias, encontraram em Malcolm & Marie uma forma de continuarem ativos.
A covid-19 sequer é citada, mas o filme não deixa de refletir uma situação provocada pela doença: confinados, muitos casais devem ter dado início a uma longa discussão sobre o relacionamento, como a que ocorre com os personagens de Washington e Zendaya.
Ele é um diretor de cinema, e ela, sua namorada, cuja história de vida serviu de inspiração para o novo longa-metragem de Malcolm. Os dois recém chegaram da sessão de estreia de Imani (o título da obra) quando a trama tem início. A empolgação do cineasta é contrastada pelo distanciamento de Marie, que logo se transforma em sarcasmo. Alguma coisa deu muito errado na noite, ou alguma coisa está muito errada na história do casal.
A D.R., porém, é aberta em um nível, digamos, mais profissional. Malcolm discursa sobre o sucesso de Imani junto aos críticos:
— Os brancos da Variety e da IndieWire babaram ovo, a moça branca do Los Angeles Times disse que eu sou o próximo Spike Lee, o próximo Barry Jenkins (do oscarizado Moonlight), o próximo John Singleton (primeiro diretor negro indicado ao Oscar, por Os Donos da Rua, de 1991). Por que não o próximo William Wyler?, eu perguntei para ela, que ficou me olhando com aquela cara de "William Wyler era negro?". Típico de gente branca. Porque eu sou um diretor negro, e a protagonista é negra, eles tentam me enquadrar sob um viés político, apesar de o filme ser sobre uma garota que tenta ficar sóbria. Há vários obstáculos por ela ser negra? Pode apostar. Essa é a realidade, mas não é um filme sobre raça. Nem tudo é político por eu ser negro.
— Angela Davis (filósofa, 77 anos, uma das principais ativistas contra o racismo e pelos direitos civis dos afro-americanos) discordaria de você — retruca Marie.
A partir daí, os dois personagens lavam a roupa suja de ressentimentos. Aliás, eles começam o filme com figurino de festa e, à medida que vão desnudando suas mágoas, terminam com peças bem simplesinhas. O básico, em oposição à imagem que queremos projetar, não raro para nós mesmos.
Haverá choro e ódio, só que tudo é filmado com uma elegantíssima fotografia em preto e branco (assinada pelo húngaro Marcell Rév, também de Euphoria, e evocando um clássico deste subgênero, Quem Tem Medo de Virginia Woolf?) e embalado por uma bacanérrima trilha sonora (vai de Duke Ellington com John Coltrane a Outkast com Cee Lo Green, de Dionne Warwick a James Brown). Não há violência física, mas as agressões verbais são intensas. Entre os xingamentos, fala-se de autossabotagem e de autossuficiência, de masoquismo e de ingratidão, de sexo e de suicídio. O passado de um é jogado contra o outro. Não parece haver um futuro para o casal, mas no instante seguinte eles podem estar se pegando — agora no bom sentido — na cama ou no tapete da sala.
É uma montanha-russa emocional, na qual Washington e Zendaya dão tudo de si, ora nos faiscantes diálogos, ora nos eletrizantes monólogos. O problema é que isso acaba se tornando exaustivo. Não à toa, quando não estão vociferando, os dois personagens mostram-se esgotados, e a fragilidade exposta nesses silêncios permite enxergarmos melhor o talento dos atores. É um respiro rápido antes de mais uma descida vertiginosa ao rancor. Ou então para mais um desvio metalinguístico, que, se por um lado apresenta pontos muito interessantes para o debate, como as questões do estereótipo racial e da autenticidade na criação artística (a propósito: o diretor, Sam Levinson, filho do cineasta Barry Levinson, oscarizado por Rain Man, é branco), por outro lado acaba sendo isso mesmo, um desvio, um tanto desconectado da discussão central — além de abrir margem para entendermos como um lamento raivoso do próprio autor (e não de seu personagem) contra os críticos que malharam seus trabalhos anteriores, como Assassination Nation (2018).
Na metade dos 106 minutos de filme já nos sentimos machucados pela pancadaria oral — para o bem ou para o mal, Malcolm & Marie pode mimetizar a dinâmica de alguns casais ou colocar um espelho diante de nossos sentimentos mais íntimos. E é curioso, para não falar incômodo, que os momentos amorosos entre Malcolm e Marie pareçam extremamente artificiais — o conflito é o território em que os dois se sentem mais à vontade. É como se ambos seguissem a lei da física descrita pela personagem de Jessie Buckley em Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020), outra obra da Netflix em que, podemos dizer, há um artista e uma musa que questiona a forma como esses papéis se relacionam.
— As pessoas mantêm relacionamentos nocivos por ser mais fácil. Física básica: um corpo em movimento tende a ficar em movimento.