É batata. Sempre que publico uma crítica negativa a um filme da Marvel — como o abacaxi de US$ 200 milhões chamado Eternos (2021), em cartaz nos cinemas desde quarta-feira (3) — ou mesmo a um título com super-heróis da DC, alguém aparece nas redes sociais para dizer algo do tipo: "Esse é o mesmo crítico que malhou Vingadores: Ultimato" (que, a propósito, está disponível no Disney+).
É mentira, mas eu entendo a confusão. GZH publicou em 23 de abril de 2019 uma crítica intitulada "Vingadores: Ultimato é o filme mais chato de 2019". A certa altura, o texto diz: "É uma bomba mais poderosa que a manopla que Thanos usou para matar metade da população do universo na primeira parte da história. É piegas. É lento. É escuro. É barulhento".
Só que seu autor era Ivan Finotti, da Folha de S.Paulo. O meu comentário, "Vingadores: Ultimato com spoilers pra caramba", saiu dois dias depois, e agora eu reproduzo aqui:
"O cinema não se responsabiliza por itens esquecidos dentro da sala." O aviso antes da exibição de Vingadores: Ultimato vem bem a calhar. Porque, ao longo das três horas de filme, o espectador terá mesmo de deixar algumas coisas de lado.
A primeira coisa a esquecer é a ilusão de que este é um filme para todos. Não é. Diferentemente dos mais de 20 longas anteriores da Marvel, que funcionavam de forma independente e até serviam de porta de entrada, Ultimato só existe para amarrar tudo o que se viu antes — é uma porta de saída (primeiro spoiler, de leve, mas vocês foram avisados). Não à toa, o título original é Endgame, fim de jogo. Os irmãos diretores Anthony e Joe Russo refletem a tradição dos gibis de super-herói, que interligam suas histórias e seus personagens até culminar em um grande evento, um desfecho épico que possibilitará um recomeço.
Portanto, se você não quiser ficar boiando enquanto hordas de fãs vibram com referências, riem de citações e choram com despedidas, faça o tema de casa e veja, pelo menos, os outros três filmes dos Vingadores. Seria útil assistir também aos três Capitão América, aos dois Guardiões da Galáxia e a pelo menos um Homem de Ferro — o primeiro, que deu a largada a tudo em 2008.
A segunda coisa a esquecer é o apreço à lógica. Trata-se de um pré-requisito básico para curtir filmes que incluem um supersoldado descongelado, um deus do trovão, um guaxinim falante e belicoso, um monstro verde à la Jekyll & Hyde e um humorista capaz de ficar do tamanho de uma formiga ou de virar um gigante. Mas em Ultimato há mais exigências quanto à suspensão da descrença. Afinal, estamos falando de uma aventura em que nossos heróis, depois que o vilão Thanos (Josh Brolin) estalou os dedos de sua manopla para desintegrar metade do universo, vão buscar algum jeito de reverter o genocídio — o que significa voltar no tempo e evitar que o Titã Louco obtenha as seis Joias do Infinito: do espaço, da mente, da alma, da realidade, do tempo e do poder.
Essa viagem ao "campo quântico" é tratada entre o cômico — em exercícios de metalinguagem, os personagens satirizam a trilogia De Volta para o Futuro e outros filmes do gênero — e o pseudocientífico: Homem de Ferro (Robert Downey Jr.), Homem-Formiga (Paul Rudd) e o agora inteligente e ainda mais divertido Hulk (Mark Ruffalo) disparam conceitos (como "o passado é o futuro e o futuro é o passado") em alta velocidade para que o público nem consiga pensar a respeito.
A terceira coisa a esquecer é o que a gente acha que sabe dos filmes anteriores. A viagem no tempo empreendida pelos heróis permite revisitar, sob uma nova perspectiva, cenas emblemáticas de Vingadores (2012), Capitão América: Soldado Invernal (2014) e Guardiões da Galáxia (2014), por exemplo. É de se pensar: a Marvel é tão genial que já havia, anos atrás, planejado seu futuro? Ou é tão genial porque soube reinventar seu passado?
A quarta coisa a esquecer é a trilha sonora intrusiva e onipresente. Irritantemente, a música, melosa demais, tenta guiar a emoção do espectador. É um alívio quando tocam pérolas do cancioneiro anglo-americano dos anos 1960 e 1970, como a doce melancolia de Dear Mr. Fantasy, do Traffic, ou a irresistível empolgação de Come and Get Your Love, do Redbone — celebrizada pela dancinha de Peter Quill (Chris Pratt).
A quinta coisa a esquecer é, quando Ultimato entrar em sua terceira e última hora, a irregularidade das duas anteriores. Nelas, o filme parece seguir à risca a fórmula Marvel, alternando-se entre a gravidade (vide o início sombrio e pessimista) e a zombaria (com direito a piadas sobre, vejam só, a bunda do Capitão América interpretado por Chris Evans). Além de não demonstrar a coesão dramática de Guerra Infinita, não chega a ter uma sequência de ação memorável, mas a batalha final deve compensar qualquer frustração. Nunca houve tantos heróis reunidos no mesmo cenário gerado por computação gráfica. Dá vontade de parar as cenas frame a frame para mapear e calcular.
A sexta coisa a esquecer — aqui, no sentido de deixar para trás mesmo — é o discurso conservador, misógino e contra a diversidade que permeia a comunidade nerd. Mulheres e negros têm protagonismo em Ultimato, desde a presença superpoderosa da Capitã Marvel (Brie Larson) ao nobre sacrifício da Viúva Negra (Scarlett Johansson), desde a comicidade contagiante do Máquina de Combate (Don Cheadle) à passagem de bastão para o Falcão (Anthony Mackie). Uma cena pode provocar urticária no macharedo: aquela em que um batalhão feminino, com Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen), Gamora (Zoë Saldaña), Valquíria (Tessa Thompson), Vespa (Evangeline Lilly), Shuri (Letitia Wright) e Mantis (Pom Klementieff), entre outras heroínas, é arregimentado para juntar-se à Capitã Marvel no combate às forças de Thanos.
— Ela não está sozinha — diz Okoye (Danai Gurira), integrante da Dora Milaje, a guarda real do reino africano de Wakanda.
A sétima coisa que pode acabar esquecida na cadeira do cinema é o seu coração. Para quem acompanhou desde o início essa aventura, a Marvel soube dar um fecho emocionante ao que ela chamou de Fase Três. A hora do adeus é linda e coerente para alguns personagens e atores — justíssimo que o Tony Stark de Downey Jr. seja homenageado, belíssimo ver o Steve Rogers de Evans enfim dançando outra vez com sua amada Peggy Carter (Hayley Atwell).
Por outro lado, é animador imaginar o que vem pela frente — será que, com Sam Wilson portando o escudo, veremos o Capitão América politizado das HQs escritas por Nick Spencer? Será que o engraçadíssimo Thor encarnado por Chris Hemsworth ganhará uma sobrevida no universo cinematográfico da Marvel, agora inserido nos Guardiões da Galáxia? Será que no próximo desafio do Pantera Negra (Chadwick Boseman) estrearão novas caras no cinema e velhos conhecidos dos quadrinhos do monarca africano, como Namor e o Quarteto Fantástico? Será que a Capitã Marvel vai contracenar com outros personagens espaciais, como o filosófico Surfista Prateado?
A última coisa a ser esquecida é a esperança de ver uma, duas ou três cenas pós-créditos. Não há. Em compensação, a Marvel resolveu concluir Ultimato com outro tipo de presente para os fãs, uma surpresa que há de abrir um sorriso em rostos molhados de lágrimas (na sessão de pré-estreia, a moça ao meu lado chorou como eu chorei quando vi A Lista de Schindler): os atores que compõem o elenco principal assinam sua aparição nos créditos. É como se fossem autógrafos em um gibi de super-herói.