David Chase, o criador da série The Sopranos (1999-2007) — também conhecida no Brasil como Família Soprano e disponível no HBO Max —, cometeu um pecado em entrevista publicada na terça-feira (2) ao The Hollywood Reporter. Catorze anos depois da derradeira cena da sexta temporada, resolveu explicar o que acontece no último episódio de sua saga sobre mafiosos muito mundanos e muito premiados: foram 112 indicações ao Emmy e 21 troféus conquistados, incluindo dois de melhor seriado dramático (2004 e 2007), três de melhor ator (James Gandolfini, em 2000, 2001 e 2003) e três de melhor atriz (Edie Falco, em 1999, 2001 e 2003). Pelo Sindicato dos Roteiristas dos Estados Unidos, foi eleita a série mais bem escrita de todos os tempos, à frente de clássicos como Além da Imaginação e Seinfeld.
Chase, 76 anos, parece ter sido contaminado por um fenômeno contemporâneo: o da urgência por finais explicados. Eu não vou reproduzir o que ele disse, porque truques de mágica não devem ser revelados. Se você quiser ler, clique neste link por conta e risco.
Prefiro continuar com as dúvidas e as especulações levantadas por aquele final em aberto, um grand finale para uma série que bagunçava as expectativas do espectador. Parafraseando o título da canção da banda Journey (Don't Stop Believin') que embala a cena, nunca deveríamos deixar de acreditar nas nossas próprias ilusões. Nunca deveríamos saber o que aconteceu com Tony Soprano, Carmela e seus filhos, Meadow (Jamie-Lynn Sigler) e A.J. (Robert Iler) naquele restaurante de New Jersey depois que, subitamente, a tela ficou preta. Foram assassinados, vítimas de um acerto de contas? O FBI apareceu para levar preso o chefão da máfia? Viveram infelizes para sempre?
Como a única certeza da vida é a morte, a família fictícia entrou em luto em 19 de junho de 2013. Aos 51 anos, Gandolfini sofreu uma parada cardíaca no Hotel Exedra, em Roma, e foi submetido a 20 minutos de tentativas de ressuscitação mesmo depois de chegar já morto ao hospital Umberto I. Estava na Itália para ser homenageado no festival de cinema de Taormina, na Sicília, território mítico da máfia. Foi irônico, porque o que Gandolfini fez na pele de Tony Soprano foi justamente tratar de desmitificar a máfia.
Se a trilogia cinematográfica O Poderoso Chefão (1972, 1974 e 1990) glamorizou a figura dos mafiosos — a ponto de influenciar os criminosos da vida real —, se de lá para cá passamos a vê-los metidos em ternos bem cortados, ostentando riqueza e circulando pelas altas esferas do poder, com The Sopranos eles se tornaram muito mais humanos e medíocres. Sua sequência de abertura já indicava um rumo diferente: deixamos a costumeira Nova York e pegamos a ponte para New Jersey.
Lá, David Chase e um time de roteiristas e diretores (como Timothy Van Patten e Allen Coulter) ambientaram menos uma série do que uma coleção de pequenos filmes, tanto é que alguns chegavam a ter 72 minutos de duração. Ainda que houvesse uma linha-mestra a amarrar cada temporada, os episódios tinham seus próprios protagonistas — a lista de coadjuvantes incluía os premiados personagens encarnados por Michael Imperioli (o volátil e narcisista Christopher Moltisanti, um protegido de Tony), Drea DeMatteo (Adriana La Cerva, inicialmente namorada de Christopher) e Joe Pantoliano (o ex-presidiário e agora capo Ralph Cifaretto). Algumas das histórias fugiam do gênero policial e se aproximavam do drama existencial. Outras alternavam de forma impressionante sequências de sonho com explosões de violência.
Entre os méritos de The Sopranos, estava a aposta no realismo: seus personagens são gente como a gente, a única diferença é o ramo de trabalho. Tony Soprano usava uma empresa de coleta de lixo como fachada para seus negócios sujos, geralmente fechados na boate brega Bada Bing. Mas ele sofria com crises de consciência, com ataques de pânico. Por isso, no episódio de estreia, Tony vai procurar uma psiquiatra, a dra. Melfi (Lorraine Bracco).
Um desavisado pode achar que David Chase seguiu a trilha aberta por Máfia no Divã, a comédia de 1999 dirigida por Harold Ramis e estrelada por Robert De Niro e Billy Crystal. Mas a série nasceu minutos antes do filme, e o tom de The Sopranos não era cômico, apesar do sádico senso de humor que permeava as tramas e apesar das citações burlescas que alguns coadjuvantes faziam de filmes como o próprio O Poderoso Chefão — o Silvio Dante interpretado pelo roqueiro Steven Van Zandt repete uma célebre frase do Michael Corleone de Al Pacino: "Just when I thought I was out, they pull me back in!" ("Bem quando eu pensava que estava fora, eles me puxam de volta!").
Pois quando já pensávamos que nunca mais veríamos os Sopranos, eles foram puxados de volta!
Entra em novembro no catálogo do HBO Max o filme The Many Saints of Newark, que retrata o passado dos mafiosos da série. Com roteiro de David Chase e Lawrence Konner e direção de Alan Taylor (que assinou nove episódios de The Sopranos), se passa entre os anos de 1960 e 1970. Michael Gandolfini, filho de James com Marcy Wudarski, sua primeira esposa (ele era casado com Deborah Lin quando morreu), faz o jovem Tony Soprano.
Também veremos as versões remoçadas de Corrado "Junior" Soprano (na pele de Corey Stoll), Silvio Dante (John Magaro) e Paullie Gualtieri (Billy Magnussen). Jon Bernthal encarna Giovanni "Johnny Boy" Soprano, e Vera Farmiga, Livia — pai e mãe de Tony. Alessandro Nivola é Dickie Moltisanti, o pai de Christopher. O elenco conta ainda com Leslie Odom Jr. (de Uma Noite em Miami) e Ray Liotta — cujo papel mais famoso foi justamente o de um mafioso, o arrependido Henry Hill de Os Bons Companheiros (1990), clássico do gênero dirigido por Martin Scorsese.
Tomara que esse prelúdio não estrague outros truques da família Soprano.