Lançado recentemente nas plataformas Apple TV, Now, Google Play e YouTube, First Cow: A Primeira Vaca da América é um filme que arrebatou os críticos. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi eleito o melhor de 2020 pelos de Nova York e pelos da Flórida, além de entrar na lista anual elaborada pela National Board of Review. No site Rotten Tomatoes, tem 96% de avaliações positivas. Em um grupo brasileiro de que participo no Facebook, recebeu quatro notas 10 e quatro 9 entre uma dezena de comentários.
Vale tudo isso?, pode estar se perguntando o espectador que desconfia quando a crítica se derrama por um filme como First Cow, ignorado nas indicações para o último Oscar, desprovido de atores famosos e assinado por uma diretora — Kelly Reichardt, 57 anos — que está muito longe de ser uma campeã de bilheteria. Os números não mentem: seu maior sucesso financeiro foi Certas Mulheres (2016), que arrecadou US$ 1,5 milhão mundialmente - só um pouco mais do que Cruella fez somente em um dia, a quinta-feira passada, e somente nos Estados Unidos —, superando os US$ 1,2 milhão de Wendy e Lucy (2008) e de O Atalho (2010). First Cow, que estreou nos cinemas estadunidenses em 6 de março de 2020 — ou seja, às vésperas de a pandemia fechar as salas em praticamente todo o mundo — e desde maio deste ano vem chegando a outros países, até agora somou US$ 351 mil.
Bem, os números da crítica também não mentem (embora, claro, eu seja suspeito para falar). Vencido o período de aclimatação a um ritmo bastante contemplativo e ao foco nas coisas comezinhas — um homem varrendo a casa ou colocando um vasinho com flor em uma prateleira, por exemplo —, o público se descobrirá brindado por uma história cheia de sensibilidade (temperada entre o otimismo e a melancolia, entre a esperança e o fatalismo) e de ressonâncias. Uma história que se passa em 1820 mas que trata de temas ainda mais urgentes nos dias de hoje: a agressividade inata e o caráter predatório do capitalismo, o fosso entre os ricos e os pobres, a necessidade de cooperação e solidariedade, a importância de um convívio mais harmônico com a natureza.
O filme é baseado no romance The Half-Life, de Jonathan Raymond, que coassina o roteiro com a cineasta. Como de hábito no cinema de Kelly Reichardt, a trama se passa em uma comunidade rural, e pela quinta vez somos levados ao Estado do Oregon. Os personagens principais se conhecem por acaso: Otis "Cookie" Figowitz (interpretado por John Magaro, o Leonard Peabody de The Umbrella Academy), um cozinheiro que viaja na companhia de caçadores e garimpeiros, e o chinês King-Lu (Orion Lee), encontrado nu e em fuga de russos vingativos. Cookie acolhe e protege o imigrante, demonstrando, de partida, suas grandes virtudes: a empatia, o cuidado, o carinho.
First Cow é, como definiu o decano da crítica brasileira Inácio Araújo, na Folha de S.Paulo, um "faroeste pelo avesso". Não só as paisagens e as gentes são diferentes daquelas a que nos acostumamos ver em filmes do gênero ambientados no mesmo período — a diretora Kelly Reichardt tampouco está interessada em dar palco à violência característica. Repare no segundo encontro entre Cookie e King-Lu, que se dá em um bar: a briga que começa no seu interior é levada para o lado de fora; ouvimos quase nada dos sopapos, enquanto a câmera se concentra na conversa dos dois amigos e na atenção que o cozinheiro dá a um bebê deixado no balcão por um dos arruaceiros.
A primeira vaca da América do título é uma espécie de galinha dos ovos de ouro. Trata-se de um bovino trazido àquelas terras por um inglês rico encarnado por Toby Jones (o vilão Zola dos filmes do Capitão América e o Hitchcock de A Garota) e chamado de Chief Factor — a referência a Factory, fábrica, em inglês, é evidente: esse personagem representa os grandes empresários que posam de civilizados (vide o fraque e a cartola) mas que visam apenas ao lucro e que tratam pessoas apenas como engrenagens. A certa altura, com um tom de voz sinistramente afável, ele defenderá as "recompensas financeiras da aplicação de punições corporais a trabalhadores indolentes":
— Quando se considera a perda do trabalho da mão punida versus o ganho do trabalho das mãos que testemunham a punição, uma punição mais rígida pode ser o caminho mais aconselhável. Mesmo uma morte devidamente processada pode ser útil na contabilidade final. É um espetáculo motivador para os indolentes, assim como para os rebeldes.
Nesse cenário, o único jeito de homens como Cookie e King-Lu sobreviverem e ascenderem é se arriscando, quem sabe enveredando pelo crime: eles enxergam a primeira vaca da região como a fonte do leite que pode fazer a diferença — tanto no sabor quanto no retorno econômico — de bolos e biscoitos a serem preparados pelo padeiro e vendidos pela dupla. O estratagema adotado incita o interessante paralelo que o jornalista Zac Schonfeld, no The Observer, traçou entre First Cow e Parasita (2019): "Deixando de lado diferenças óbvias de estilo e tom, ambas são histórias de personagens da classe trabalhadora que astutamente, mas arriscadamente, constroem meios de subsistência em torno da credulidade e da estupidez de ricos proprietários de casas/terras. E em ambos os filmes, inevitavelmente, os esquemas dão errado e a classe que detém o capital começa a suspeitar que alguém se apoderou dos meios (ou das tetas) de produção bem debaixo de seu nariz". Schonfeld acrescenta que, não à toa, o diretor de Parasita, o sul-coreano Bong Joon-Ho, é um dos maiores admiradores de Reichardt e, em uma conversa via vídeo intermediada pelo jornalista David Sims na revista The Atlantic, "até expressou ciúme por First Cow".
Este é o filme que os brasileiros podem assistir desde a última quinta-feira: aquele que foi capaz de causar inveja no realizador de um dos títulos mais premiados e aclamados dos últimos tempos, ganhador de 300 prêmios, incluindo a Palma de Ouro no Festival de Cannes e quatro Oscar.