Em cartaz a partir desta quinta-feira (4), Marighella chega aos cinemas exatos 52 anos depois do assassinato do guerrilheiro brasileiro pela ditadura militar — e quase quatro anos após o ator Wagner Moura concluir seu primeiro filme como diretor.
Marighella teve lançamento mundial no Festival de Berlim de 2019, fora de competição. Originalmente, a estreia comercial seria em 20 de novembro daquele ano, para marcar o Dia da Consciência Negra e o cinquentenário da morte de Carlos Marighella, baiano nascido em 1911 que foi deputado federal pelo PCB e cofundador, em 1967, da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo que praticava a oposição armada ao regime instaurado pelo golpe de 1964. Mas a produção do longa-metragem não conseguiu cumprir com todos os trâmites exigidos pela Agência Nacional do Cinema, a Ancine — que, por sua vez, negou pelo menos dois pedidos de recursos para a distribuição do filme. A nova data escolhida foi 14 de maio de 2020, mas então veio a pandemia de coronavírus, que empurrou o evento para 14 de abril de 2021. O agravamento da covid-19 no país impediu a concretização desse anúncio.
Com roteiro escrito por Moura e Felipe Braga (criador do seriado Samantha! e coautor da série Sintonia), o filme é baseado na biografia Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (2012), do jornalista Mário Magalhães. A trama se concentra nos últimos anos de vida do protagonista, de 1964 a 1969, quando o comunista chegou a ser definido como "o inimigo número 1 do Brasil". O recorte temporal atende a dois desejos do diretor. O primeiro era o de combater as narrativas que minimizam a truculência do regime militar.
— Nosso filme vem para dizer que foi ruim, que foi horrível, que teve gente com coragem de enfrentar aquilo — disse em entrevistas o cineasta estreante, que termina Marighella ao som de uma emblemática canção de protesto: Pequena Memória para um Tempo Sem Memória, de Gonzaguinha ("Dos humilhados e ofendidos / Explorados e oprimidos / Que tentaram encontrar a solução / São cruzes sem nomes / Sem corpos / Sem datas / Memória de um tempo onde lutar por seu direito / É um defeito que mata").
O segundo desejo era o de fazer uma obra popular (aliás, em breve vai virar minissérie da Globo), de comunicação direta com a faixa etária que forma a maioria das plateias, aquela dos 16 aos 24, 25, 26 anos. É por isso que os letreiros iniciais, que acompanham imagens da violenta repressão a manifestações pós-golpe, enfatizam a participação dos estudantes na resistência. É por isso que o elenco apresenta coadjuvantes como Bella (interpretada por Bella Camero) e Humberto (vivido por Humberto Carrão), que dão rosto à juventude revolucionária da época.
— Jovens com a metade da nossa idade e o dobro da nossa coragem — elogia Branco, personagem fictício encarnado por Luiz Carlos Vasconcelos e inspirado em Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970), o Comandante Toledo.
Era em nome de um vínculo com as massas que a primeira escolha de Moura para o papel principal foi o rapper Mano Brown, dos Racionais MC's, grupo que em 2012 compôs Mil Faces de um Homem Leal (Marighella) para ser a música-tema do documentário Marighella, de Isa Grinspum Ferraz (disponível no Telecine).
— Não tem no Brasil alguém mais Marighella do que Brown. Poeta e guerrilheiro, amoroso e agressivo — afirmou Moura certa vez.
Mano Brown chegou a ensaiar para as filmagens, mas a agenda de shows impediu sua participação. Então, a produção recorreu a outro cantor: Seu Jorge, que tem a mesma idade do rapper (hoje está com 51 anos) mas mais experiência no cinema — inclusive ganhou prêmio de melhor ator no Festival de Havana pelo Mané Galinha de Cidade de Deus (2002) e foi colega de elenco de Wagner Moura em Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010), como o bandido Beirada. Sua escalação gerou certo burburinho em um país que tem tradição no embranquecimento de personalidades negras: houve quem reclamasse que o diretor estava querendo "empretecer Marighella". Em conversa com os jornalistas José Eduardo Bernardes e Mariana Pitasse, do Brasil de Fato, Moura comentou:
— Seu Jorge, de fato, tem a pele mais escura do que a de Marighella, mas ele era preto, neto de escrava sudanesa (e filho de um imigrante italiano). Seu Jorge ser mais escuro do que Marighella não é uma questão. Ele não poderia era ser mais claro. Marighella foi um defensor da justiça social e igualdade entre as pessoas, mas nunca falou sobre a questão do racismo, porque não era uma pauta da esquerda. Também não é suficientemente hoje, como deveria ser. A esquerda não entendeu que não se pode falar de nenhuma questão social sem falar de racismo. Sem entender que o evento histórico que fundamenta nossas relações sociais é a escravidão.
Essa discussão, porém, jamais é central em Marighella, que começa como um típico filme de ação: o guerrilheiro comanda o roubo de um carregamento de armas em um trem em movimento, no Estado de São Paulo, em agosto de 1968. Trata-se de um nervoso e virtuoso plano-sequência, no qual também despontam outras qualidades desta superprodução para os padrões brasileiros — o orçamento foi de R$ 10 milhões. Entre elas, estão a direção de fotografia do premiadíssimo argentino Adrian Teijido, dos longas O Palhaço (2011) e Elis (2016) e das séries Capitu (2008) e Narcos (2015-2017) — trabalhou com Wagner Moura, que fazia o papel de Pablo Escobar — e a primorosa reconstituição de época, a cargo de Frederico Pinto, de Claudia Andrade (ambos também egressos de Elis) e da figurinista Verônica Julian.
Na cena, os versos da canção Monólogo ao Pé do Ouvido (1994), de Chico Science & Nação Zumbi — "Viva Zapata! / Viva Sandino! / Viva Zumbi! / Antônio Conselheiro!" — estabelecem a estatura mítica do Marighella de Moura, realçada pela figura imponente de Seu Jorge e pela voz grave com a qual o ator profere declarações heroicas como "Eu não tenho tempo para ter medo" ou ameaçadoras como "A única coisa que consigo prometer agora é tortura e morte". Daí, o filme recua a 1964 para humanizar esse personagem. Em outro acerto do roteiro e da execução, a trajetória de luta do protagonista é conectada a sua trajetória como pai do garoto Carlinhos. Os dois são vistos no mar do Rio, em um momento sensível que em tudo — incluindo iluminação, enquadramento e montagem — remete àquele banho de Juan (Mahershala Ali) e o menino Little (Alex Hibbert) no oscarizado Moonlight (2016), de Barry Jenkins.
Sendo coerente com seu discurso, Wagner Moura concentra boa parte das duas horas e 35 minutos da trama nas ações e nas reações — ora censuradas, ora maquiadas, ora destacadas pela imprensa — que envolvem a resistência armada e as forças repressoras. Ainda que a edição assinada pelo gaúcho Lucas Gonzaga não espetacularize os tiroteios, os sequestros e a tortura, Marighella é tiro, porrada e bomba. E também gritaria e frases de efeito.
Se a trilha sonora é sóbria e até discreta, na direção de atores Moura adota e acolhe um tom exagerado na tentativa de realçar o estado de tensão dos que viviam na clandestinidade e a crueldade da ditadura — nitidamente baseado no famigerado delegado Sérgio Fleury (1933-1979), Lúcio, o agente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo interpretado por Bruno Gagliasso, é um personagem que acaba resvalando para a caricatura. Ao mesmo tempo, o texto força a mão nos retratos de heroísmo e patriotismo.
Quando um jornalista francês pergunta se Marighella é maoísta, trotskista ou leninista, o entrevistado responde:
— Eu sou brasileiro.
Quando um guerrilheiro está prestes a ser morto, brada que a História o reconheça como "um brasileiro foda".
Quando a ditadura aperta o cerco, ouve-se exclamações do tipo "Vocês estão matando o brasileiro!" ou "Esse homem amou o Brasil!".
Quando os letreiros de encerramento começam a subir na tela, somos surpreendidos por uma cena pós-créditos em que vários personagens cantam aos berros o Hino Nacional Brasileiro — seria um aceno ao público jovem que consome os filmes de super-herói? Fato é que, a exemplo dos títulos da DC e da Marvel, a cena extra lança um enigma para o espectador: por que, entre esses personagens, estão alguns que morreram no decorrer da trama? Ou se trata de um flashback? Se é um momento do passado, qual a razão da ausência justamente de Marighella?
Pinçada da preparação do elenco, a cena acaba criando um ruído em um filme tão expositivo em seus diálogos e tão preocupado em ser claro e direto, mesmo quando faz isso de forma irônica — vide a passagem do depoimento mentiroso do delegado Lúcio sobre a morte do protagonista: quando ele se levanta, revela-se uma placa na parede com a inscrição "Brasil: verdade e Justiça".