Na música Mil Faces de um Homem Leal, do grupo de rap Racionais MC’s, Mano Brown canta: “Mártir, mito ou maldito sonhador/ Bandido da minha cor/ Um novo messias”. Caetano Veloso recita em Um Comunista, do disco Abraçaço, de 2012, “Ó, mulato baiano/ Samba o reverencia”, embora complemente com “Muito embora não creia/ Em violência e guerrilha/ Tédio, horror e maravilha”.
Tema de músicas, livros e filmes, Carlos Marighella (1911-1969) nasceu em Salvador (BA) e foi morto a tiros há 50 anos – que serão completados nesta segunda-feira (4/11) –, em São Paulo, por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Político, escritor e guerrilheiro, ele sempre se conectou com o universo cultural, dialogando com escritores (Jorge Amado e Graciliano Ramos), pintores (Cândido Portinari e o espanhol Joan Miró), dramaturgos (Augusto Boal e Dias Gomes) e cineastas (Glauber Rocha, o francês Jean-Luc Godard e o italiano Luchino Visconti). É benquisto por artistas e intelectuais da esquerda. Ao mesmo tempo, Marighella e suas ideias representam uma ameaça para outros tantos.
Em vídeo publicado em 2016, o então deputado federal e hoje presidente Jair Bolsonaro criticou o filme Che (2008, dividido em duas partes), que mostra, segundo ele, uma imagem positiva do guerrilheiro Ernesto Guevara. E traçou um paralelo com Marighella, longa-metragem dirigido por Wagner Moura, que ainda estava em fase de produção.
– A exemplo do colega do “lado de lá”, que não mostra os fuzilamentos, os crimes praticados por Che Guevara; pelo lado de cá, Wagner Moura também não mostra os crimes praticados por Carlos Marighella – disse Bolsonaro ainda antes de o filme estar pronto (a primeira exibição correria três anos depois, no 69º Festival de Berlim, em fevereiro de 2019).
Em seguida, Bolsonaro citou o Manual do Guerrilheiro Urbano (1969), do próprio Marighella, que tinha como objetivo apresentar táticas a serem seguidas por movimentos revolucionários comunistas.
– Ele prega o extermínio físico de integrantes das Forças Armadas e da polícia. Continua: a expropriação dos recursos do governo serve para o sustento da revolução – falou Bolsonaro, relacionando o manual com o governo do PT (o vídeo está disponível no canal do YouTube de seu filho Carlos Bolsonaro).
Corta para 2019. Marcada originalmente para 20 de novembro, a estreia da cinebiografia Marighella, de Wagner Moura (e que é estrelada por Seu Jorge), foi adiada. Segundo nota da produtora O2 Filmes, não foi possível “cumprir a tempo todos os trâmites exigidos pela Agência Nacional do Cinema (Ancine)”. Ainda não há data para o lançamento no Brasil. O adiamento se deu a partir da negação de um recurso encaminhado pela O2 Filmes à Ancine no final de agosto. Nele, a produtora questionava se a verba para a comercialização da obra poderia ser liberada antes da assinatura efetiva do contrato com o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que estava demorando a ser finalizado. A O2 também teve outro recurso negado, relacionado ao ressarcimento de despesas pagas com dinheiro próprio no valor de mais de R$ 1 milhão, por meio do FSA. Em nota, a O2 afirmou que solicitou que a Ancine o esclarecimento se essa quantia se adequava a um edital de complementação do FSA, o que foi indeferido pela agência.
Quem vibrou com essa negação de recursos ao filme foi Carlos Bolsonaro: “Noutros tempos, o desfecho seria outro, certamente com prejuízo aos cofres públicos”, escreveu no Twitter.
O filme é inspirado na biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães (Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo) e acompanha os últimos cinco anos da vida do guerrilheiro. Em entrevista à revista Época, Wagner Moura comentou não ver nada de errado na deliberação da Ancine, mas ressaltou que, “se o ambiente político fosse outro, a decisão da agência talvez tivesse sido outra”.
– De repente, a história ganhou outra dimensão. Os filhos de Bolsonaro tuitaram a respeito. É impossível não pensar que há uma articulação política para criar esse tipo de ambiente – disse o diretor.
O projeto da cinebiografia é uma das representações de Marighella que acendem o pavio de discussões sobre a posição do político e guerrilheiro na História do Brasil, em tempos de um país polarizado. Afinal, ele é um vilão ou um herói? Revolucionário? Terrorista? A história é mais complexa do indica que esse tipo de dualismo.
Politização e radicalismo
Carlos Marighella é filho do operário italiano Augusto Marighella e de Maria Rita do Nascimento, negra e filha de escravos. Cursou Engenharia Civil na Escola Politécnica da Bahia, mas ingressou na militância política e deixou a faculdade de lado. Filiou-se ao PCB e fez oposição ao Estado Novo de Getúlio Vargas. Foi duas vezes preso e torturado naquela época, sendo que, na segunda ocasião, permaneceu encarcerado por seis anos. Após ser solto, em 1945, foi eleito deputado federal pelo PCB da Bahia. Porém, perdeu seu mandato um ano depois, quando o partido foi posto na ilegalidade. Restou-lhe atuar na militância clandestinamente.
Quando os militares tomaram o poder, em 1964, Marighella rompeu com o PCB porque o partido defendia uma oposição sem armas – e isso era o oposto do que ele defendia. Em 1968, fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de orientação comunista que utilizava métodos de guerrilha urbana – como assaltos, sequestros e ações terroristas. Em parceria com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), foi um dos responsáveis pelo sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. Na época, Marighella se tornou o principal inimigo dos militares, o que fez aumentarem os esforços para capturá-lo. Foi morto a tiros após uma emboscada coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Marighela é uma espécie de Che Guevara que fracassou. Usou da retórica e do terrorismo urbano para fazer valer sua causa.
FRANCISCO RAZZO
Professor de Filosofia
Essa trajetória o alçou à condição de ícone celebrado pela esquerda como símbolo de luta pela democracia e, ao mesmo tempo, uma figura depreciada pela direita que o vê como um criminoso. Mas sua importância no imaginário nacional cresceu recentemente, analisa Carlos Zacarias, doutor em História e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para Zacarias, o que explica esse crescimento é o fato de a população ter mais acesso a informações e, principalmente, o processo de “ultrapolitização” por que passa o país nos últimos anos:
– A figura de Marighella é importante para a História do Brasil pelo que representou politicamente, tendo dedicado boa parte de sua vida à luta pela causa em que acreditava. Com a trajetória que teve, haveria de ser importante na história e vida política de qualquer país.
As visões opostas estão escancaradas conforme quem direciona o olhar para essa trajetória. Para o historiador Edson Teixeira, autor de A Face Oculta de Marighella, diante do avanço do conservadorismo, as referências históricas de resistência contribuem para a construção de uma memória combativa:
Esquecer e silenciar seu contexto de luta é um revisionismo histórico. Corrobora a narrativa que legitima a ação terrorista do Estado.
EDSON TEIXEIRA
Historiador
– Marighella escreveu e afirmou várias vezes que “o conformismo é a morte”. Sua trajetória é marcada por uma obstinada luta pela liberdade diante das formas de opressão. Sua conduta cotidiana em defesa dos trabalhadores é uma referência a jamais se conformar diante das adversidades. Nesse sentido, é e sempre será um herói, sem empáfia e com muita ternura, características essenciais que partilhou em sua vida.
Já Francisco Razzo, professor de filosofia e colunista do site Gazeta do Povo, acredita que Marighella pode ser definido a partir do paralelo com Che:
– Marighella é uma espécie de Che Guevara que fracassou. Usou da retórica e do terrorismo urbano para fazer valer sua causa revolucionária. Podem inventar milhões de razões para justificar seus atos, buscar traços de heroísmo, pintar uma narrativa coerente para funcionar nas telas do cinema, no imaginário dos intelectuais, enfim, fazer apelos à dimensão humanista da luta de vida ou morte pela liberdade num contexto de ditadura etc., mas, no fundo, o próprio Marighella tinha orgulho da guerrilha que idealizou, planejou, exortou e lutou.
O historiador e comentarista político Marco Antonio Villa prefere comparar Marighella com outra figura histórica: Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) durante a ditadura e foi o primeiro militar a ser reconhecido pela Justiça como torturador. Para Villa, é como se fossem duas faces da mesma moeda.
– Mas é claro que lembrando que o Ustra faz toda aquela barbaridade sob a sombra e a proteção do Estado, o que é intolerável – pontua. – Ustra é um assassino tal qual o Marighella. Os dois fazem parte da mesma visão de mundo que não consegue entender o que é democracia, convivência com os contrários, pluralidade.
De acordo com Villa, Marighella acabou sendo alçado à condição de herói porque o Brasil está vivendo uma relação “binária” que é “danosa” ao próprio país:
Marighella não foi santo nem demônio. Ninguém é obrigado a gostar dele ou a rejeitá-lo. Mas é impossível permanecer insensível à sua trajetória trepidante.
MÁRIO MAGALHÃES
Biógrafo de Marighella
– De um lado, estão os que fazem ode à tortura, ao Coronel Ustra. De outro, os que homenageiam e glorificam o terrorismo de Marighella. A história foi muito mais complexa, não foi uma relação de torturadores e terroristas. A ditadura foi um momento em que as liberdades foram suprimidas no país, e a conquista e a ampliação de liberdades que aconteceram após o regime militar se deram graças à luta democrática. Passou pelo antigo MDB, pela Igreja, pelos sindicatos, pelos estudantes, pelos jornalistas, pelos intelectuais, pelas universidades. Um longo processo de enfrentamento e vitória sobre o autoritarismo. Quem venceu o regime militar não foi a luta armada.
O que colabora para o enaltecimento de sua figura, aponta Zacarias, é o fato de ter sido assassinado pela ditadura. Segundo o historiador da UFBA, a morte provocada por agentes da repressão oficial acabou conferindo a ele uma dimensão heroica semelhante à que outras figuras históricas tiveram, entre essas Che Guevara.
– Marighella não foi santo nem demônio – comenta Mário Magalhães. – Ninguém é obrigado a gostar dele ou a rejeitá-lo. Mas é impossível permanecer insensível à sua trajetória trepidante. Sem conhecê-la, a opinião contra ou a favor dele corre o risco de ser leviana.
Verdades e desinformações
No texto Sobre a Organização dos Revolucionários, que circulou em agosto de 1969 sob a forma de panfleto, o próprio Marighella se definiu como terrorista: “Todos nós somos guerrilheiros, terroristas e assaltantes”. Denise Rollemberg, professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), sublinha que a maior parte das organizações e militantes da luta armada negou essa identidade na época, e seus antigos combatentes a negam no presente. Já Marighella buscou uma conotação positiva ao termo. “Hoje, ser ‘violento’ ou ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado na luta armada contra a vergonhosa ditadura militar e suas atrocidades”, escreveu no Manual do Guerrilheiro Urbano.
Denise contextualiza:
– Se pensarmos terrorismo como a prática de atentados à população civil e não exclusivamente a alvos identificados com as forças de coerção, em determinado contexto, as organizações e os líderes da esquerda armada, inclusive a Ação Libertadora Nacional e Marighella, não foram terroristas.
O jornalista Lucas Berlanza, editor dos sites Sentinela Lacerdista e Boletim da Liberdade, crê que esse tipo de avaliação acarreta uma divinização de figuras da esquerda:
Ocorre que, com a ascensão da hegemonia de um pensamento de esquerda nas esferas de expressão do imaginário após o regime militar, os comunistas e todos os tipos de lideranças desse campo político passaram a ser divinizados.
LUCAS BERLANZA
Editor dos sites Sentinela Lacerdista e Boletim da Liberdade
– Ocorre que, com a ascensão da hegemonia de um pensamento de esquerda nas esferas de expressão do imaginário após o regime militar, os comunistas e todos os tipos de lideranças desse campo político passaram a ser divinizados, convertidos nos novos ícones do panteão a ser exaltado, surrupiando o espaço de referências realmente dignas de admiração.
Francisco Razzo defende que Marighella não deve ser idolatrado, o que seria uma atitude “de lunático”.
– Também não deve ser reduzido a bandido ou criminoso comum – ressalva. – Porque não é assim tão simples. A categoria de “banditismo” não fornece a chave de compreensão adequada para a biografia de Marighella. Não se trata de um sujeito comum, cometendo homicídio. Suas causas e meios precisam ser devidamente investigados. Erram aqueles que dizem “um mero bandido, um terrorista”.
É o caso de se relevar a causa que ele defendia, acredita o professor. Villa, no entanto, afirma que suas ideias não tiveram maior relevância no campo teórico:
– Ele não era nenhum pensador. Não teve relevância política. Virou um símbolo que, vez ou outra, correntes de esquerda resolvem desenterrar. O que ele legou de interpretação do Brasil? Nada.
Magalhães crê que justamente a contradição em torno de Marighella faz com que a propagação de informações sobre ele sejam exageradas ou distorcidas. O jornalista e escritor relata que, quando o guerrilheiro foi preso, em 1936, aos 24 anos, a polícia e a imprensa o apontaram como o novo líder do Partido Comunista.
Ele não era nenhum pensador. Não teve relevância política. Virou um símbolo que, vez ou outra, correntes de esquerda resolvem desenterrar. O que ele legou de interpretação do Brasil? Nada.
MARCO ANTONIO VILLA
Historiador e comentarista político
– E era mentira: ele não pertencia à direção do PCB – esclarece. – O que ocorre hoje é a disseminação de falsidades que impedem que cada cidadão, com autonomia, forme o seu juízo sobre o personagem histórico Marighella. Em sua época, ele jamais foi acusado, nem pelos seus inimigos mais figadais, tenazes e sangrentos, de defender ou praticar tortura. Pelo contrário: ele foi torturado. Mas agora há quem alegue que ele foi torturador. No balanço sincero da História, quem espalha tal cascata é pior do que Filinto Müller, o temível chefe de polícia no Estado Novo, e do que os torturadores da ditadura pós-1964. Nem eles chamaram Marighella de torturador.
Como realça Zacarias, sua trajetória está permeada por uma disputa política: em determinado momento, o guerrilheiro recebe uma importância positiva, e, no momento seguinte, podem lhe ser conferidas atribuições negativas.
O papel que Marighella cumpriu no Brasil muitas vezes é distorcido, define o professor da UFBA. E é essa distorção que deve ser combatida pelos historiadores. Esses não buscam transformar personagens do passado em heróis ou vilões – mas, isso sim, instituir o que realmente foi esse passado.
– Dizer que Marighella foi líder de quadrilha, que chefiou grupos que mataram figuras inocentes: isso não é correto – assegura o pesquisador.
Mas a distorção também se dá para o outro lado, defende Denise. Ela ressalta que, passada a luta armada dos anos 1960 e 70, a maior parte dos antigos combatentes falseia a trajetória de Marighella ao identificar sua luta como democrática – e essa “interpretação equivocada” chegou à historiografia.
O papel que Marighella cumpriu no Brasil muitas vezes é distorcido. Dizer que foi líder de quadrilha, que chefiou grupos que mataram figuras inocentes: isso não é correto.
CARLOS ZACARIAS
Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
– Sua luta não era democrática – define a professora. – Os partidos e a organização que fizeram a luta armada lutavam por uma revolução socialista, segundo diferentes modelos: soviético, maoísta, foquista/cubano, qualificando a democracia como burguesa. Seu objetivo nunca foi a retomada das instituições democráticas derrubadas com o golpe civil-militar de 1964. Portanto, dizer que a luta armada contra a ditadura, levada adiante pela ALN ou qualquer outra era democrática é distorcer a história. E tal interpretação equivocada não está restrita a esse universo de ex-militantes, mas marca presença na historiografia, o que é lamentável.
Edson Teixeira contesta ressaltando que é preciso compreender o contexto em que se desenvolveram as formas da “luta revolucionária ofensiva”, sobretudo na década de 1960. Era nesse período específico que a causa defendida por quem combatia o regime autoritário apontava para ações armadas urbanas e rurais.
– Esquecer e silenciar seu contexto de luta é um anacronismo e revisionismo histórico. Corrobora a construção de uma narrativa que legitimou e legitima a ação terrorista do Estado, que continua a aplicar o terror sobre setores organizados da sociedade, assim como na implantação de um Estado Penal que massacra as classes populares, em especial ao povo preto da favela e da periferia – diz o pesquisador.
De qualquer maneira, não há como prever que essa disputa de narrativas sobre o passado de Marighella chegue a um consenso algum dia, como alerta Zacarias:
– Enquanto os problemas da sociedade continuarem existindo como existem, a humanidade há de produzir versões distintas de confrontos do passado em perspectiva de construção do futuro.
Magalhães arremata:
– A ditadura e certa historiografia tentaram eliminar Marighella da memória brasileira. Fracassaram, ainda que ao conhecer sua vida seja tão legítimo admirá-lo quanto deplorá-lo.