Após mais de dois anos de percalços, Marighella finalmente chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (4). O filme, que marca a estreia do ator Wagner Moura na direção, fez sua première mundial no Festival de Berlim, em fevereiro de 2019. O longa deveria estrear em novembro do mesmo ano no Brasil, mas foi adiado por entraves com a Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Marighella teve pelo menos dois pedidos negados de comercialização enviados à agência, que destina recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para que filmes possam ser produzidos e distribuídos. Em 2020, Moura chegou a afirmar que a Ancine estava censurando a obra. Houve um terceiro pedido negado neste ano, mas que, segundo a produtora do longa, ocorreu devido a uma "tecnicalidade".
Antes mesmo de ser lançado, o filme já era atacado. Em vídeo publicado em 2016, o então deputado federal e hoje presidente Jair Bolsonaro criticou o filme Che (2008, dividido em duas partes), que mostra, segundo ele, uma imagem positiva do guerrilheiro Ernesto Guevara. Ele traçou um paralelo com Marighella, que ainda estava em fase de produção, alegando que Moura não mostraria os crimes do protagonista — a cena inicial do filme mostra o guerrilheiro realizando um assalto a trem.
Marighella também enfrentou pelo menos duas ondas de ataques no IMDb — site que agrega informações, notas e comentários sobre filmes, programas de TV e séries. Em ação orquestrada, usuários deixaram avaliações negativas do longa na plataforma.
Tendo como base a biografia Marighella — O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (Companhia das Letras), de Mário Magalhães, o filme apresenta um recorte dos últimos anos de vida do baiano Carlos Marighella (1911-1969), que é interpretado por Seu Jorge. Político, escritor e guerrilheiro, ele liderou um dos maiores movimentos de resistência contra a ditadura militar no Brasil nos anos 1960. Foi fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de orientação comunista que utilizava métodos de guerrilha urbana — como assaltos, sequestros e ações terroristas. Marighella morreu a tiros em São Paulo, por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no dia 4 de novembro de 1969 (ou seja, o filme estreia 52 anos após a morte do protagonista).
O longa de Moura mostra um delegado fictício chamado Lúcio (Bruno Gagliasso), que persegue Marighella implacavelmente. Enquanto isso, o guerrilheiro tenta divulgar sua luta contra a ditadura e tenta organizar ações ofensivas.
Em entrevista por telefone a GZH, Wagner Moura falou sobre a realização do longa, sobre Marighella e os percalços para lançar a obra.
Qual foi o impulso que te fez querer dirigir seu primeiro longa contando a história do Marighella?
Eu já estava querendo dirigir. Era uma coisa que já estava planejando fazer. Mas nunca imaginei que fosse dirigir um filme desses. Não é uma escolha muito óbvia para uma primeira direção: é um longa complicado pra caramba, cheio de implicação histórica, com muitos personagens. Um filme caro, que deveria ter custado muito mais do que custou. O que aconteceu foi que Maria Marighella, que é neta de Marighella, muito minha amiga em Salvador (BA), me presenteou com o livro de Mário Magalhães. Eu disse: "Vamos fazer um filme". Queria ver um filme dessa história, queria produzi-lo, queria que acontecesse. Bel Berlinck, que é produtora da O2 Filmes, estava em Salvador nessa época. A gente conversou e se animou. Depois, ficamos procurando quem dirigiria esse filme. Daí alguém dizia: "Seria bom que fosse alguém da Bahia". "Pô, era bom que fosse uma pessoa de esquerda." Daí pensei: "Acho que sou eu, então" (risos). Peguei essa história pela frente. Em 2013, a gente iniciou o trabalho. Compramos os diretos do livro de Mário e começamos a escrever o roteiro, eu e Felipe Braga.
Marighella tem sua trajetória permeada por uma disputa política: para alguns, ele recebe uma importância positiva, enquanto outro podem lhe conferir atribuições negativas. Muitas vezes, ele teve sua história distorcida. Que retrato você procurou fazer de Marighella?
Um ser humano. Busco mostrar as pessoas com as complexidades que elas têm. O livro do Mário é muito robusto, com informações muito preciosas sobre a vida de Marighella, embora meu recorte tenha sido muito curto. Se o livro do Mário é 100%, meu filme é 1% do que foi a história. Para mim, ele tem que ser uma pessoa, com contradições, defeitos e virtudes. Como todo personagem que fiz como ator.
Para você, que papel o Marighella cumpriu para o Brasil?
Marighella foi um lutador. Um cara que, no país de desigualdades gritantes, esteve sempre ao lado dos mais fracos e oprimidos, dos mais pobres, dos trabalhadores, das minorias, da democracia. Entregou sua vida pela democracia. Esse longa, naturalmente, surge da minha admiração profunda por Marighella e pelo legado dele. Era uma pessoa complexa, o que tentei mostrar no filme.
Seu Jorge se destaca no papel de Marighella. Como surgiu a ideia de escalá-lo para viver o guerrilheiro?
Eu digo isso sempre porque é verdade: acho que Seu Jorge é a pessoa mais talentosa que eu conheço. Ele faz até tricô muito bem. É uma loucura! Onde ele bota a mão sai uma coisa boa. É um grande ator. Minha primeira opção para Marighella era o Mano Brown. Quando o Brown não pôde mais fazer o filme, promovemos testes com outros atores. Foi quando me lembrei de Jorge. "Pô, claro", pensei. Um ator já experiente, carismático e talentoso, que chegou ali numa hora difícil, pois os atores do filme estavam há mais de um mês ensaiando. Ele chegou com a galera muito quente já. Como a gente diz na Bahia, teve que pegar a galinha pulando, e fez um trabalho extraordinário.
Quem também chama a atenção é Bruno Gagliasso como Lúcio. O papel dele é praticamente uma personificação do fascismo. Como vocês desenvolveram esse personagem?
Bruninho é um cara que sempre gostei muito. Ele foi meu colega na novela Paraíso Tropical, em que éramos dois irmãos que saíam na porrada o tempo todo. Bruno tem uma coisa muito intensa, que eu adoro e tenho também quando estou trabalhando. Tem uma energia que não para! Parece que está levando choque o tempo todo. Ele fez um teste muito bom para o filme. Testamos muitos atores para o papel, mas o dele foi disparado o melhor de todos. Eu queria um Lúcio como esse personagem que representa esse fascismo, como você mencionou. Que tivesse total oposição ao Marighella, com características físicas opostas. Se Marighella é preto, queria um cara de olho azul e branco. Porque o racismo também é uma coisa que está muito presente no filme.
Até ser lançado no Brasil, o filme passou por percalços e sofreu ataques: teve entraves burocráticos da Ancine, teve o então deputado federal Jair Bolsonaro criticando sem ter assistido, foi alvo de nova campanha contrária no IMDb. Após todos esses obstáculos ao seu primeiro longa, como você descreve o sentimento de finalmente lançá-lo no Brasil?
Os percalços seguem até agora. Até hoje a militância bolsonarista vai ao IMDb dar nota baixa para o filme sem ter estreado. Atacam a gente nas redes sociais. Não só a militância, os próprios membros do governo publicamente em suas redes sociais atacam o longa. É uma coisa inacreditável, a gente tem um governo federal contra um filme. A minha alegria é que todos os meus parceiros dessa produção são pessoas muito fortes, com muita determinação e certeza de que é importante botar esse filme na rua. É importante não se dobrar a esse tipo de ameaça. No final das contas, isso também é defender a democracia e corroborar com o legado que Marighella deixou com a sua morte. Lançar o filme agora, para nós, é uma vitória. Apesar dos inacreditáveis três anos que se passaram desde a nossa estreia no Festival de Berlim, chegou a hora. É muito lindo que em todas as pré-estreias o longa foi abraçado pelos movimentos sociais e por todas as pessoas que se identificam com a luta de Marighella, que acompanharam o calvário do filme para ser lançado. Então, estamos bastante cercados de amor. Para mim, é o tema desse filme: Marighella é um filme de amor. Sobre gente que ama.
Há um registro catártico nos pós-créditos, com os atores cantando o Hino Nacional enfaticamente, bastante emocionados. Porém, Marighella não está presente. Qual era a sua intenção com essa cena?
Os atores estavam muito entregues ao filme. Nunca vi uma coisa dessas, eles queriam muito contar essa história. Me deram muito. Todo dia, antes de entrarem em cena, eles tinham um ritual próprio, que não tinha nada a ver comigo. Cada dia faziam uma coisa diferente, que os preparava para a cena específica. Naquela ocasião, iam filmar uma cena muito dura. Eles se reuniram antes de entrar em cena, se deram as mãos e começaram a cantar o hino. Porém, começaram a se emocionar demasiadamente com aquilo. Peguei a câmera e mandei filmar. Achei muito bonito, muito forte. Depois terminei usando. Aquilo não era uma cena. Se você reparar bem, alguns estão com roupas atuais, sem figurino de época (o filme se passa nos anos 1960).