Já disponível para aluguel no Amazon Prime Video, na Apple TV e no YouTube, Infiltrado (Wrath of Man, 2021) pode servir como um advogado de defesa meu. Ou um atestado das minhas contradições.
Vou explicar.
Minhas opiniões recentes sobre a série sul-coreana Round 6 e sobre o show de humor Encerramento, do comediante estadunidense Dave Chappelle, ambos em cartaz na Netflix, provocaram comentários negativos. Alguns leitores me classificaram como "politicamente correto", na melhor das hipóteses, ou "esquerdopata censurador". Reclamaram de "militância política" e de "discursos de lacração". E disseram que meu teclado só tem as letras M e I — admito que dei risada da alusão ao "mimimi", o que não aconteceu com as piadas homofóbicas, transfóbicas e misóginas de Chappelle.
Também admito que, em certos assuntos, visto sem pudores a camiseta do politicamente correto. Além dos preconceitos já citados, não tolero racismo, apologia ao estupro e discriminação contra pessoas com deficiência, por exemplo.
Mas isso não quer dizer que eu seja 100% politicamente correto. O histórico da coluna mostra elogios ao polêmico filme francês Lindinhas (Mignonnes, 2020), acusado de incentivar a pedofilia. De fato, a diretora Maïmouna Doucouré poderia ter sido mais comedida na exposição dos corpos das personagens, mas, no fundo, ela está criticando a normalização da sexualidade precoce, o estímulo ao exibicionismo embutido em redes sociais como Facebook e Instagram e o comportamento alheio dos pais em relação à vida digital das crianças.
Também sou fã de comédias politicamente incorretas, já me senti cúmplice do vilão e tenho entre os filmes do coração um título em que a violência explode na nossa cara.
Pois violência é o que não falta a Infiltrado, que guarda semelhanças com outro filme lançado em 2021 e também já disponível no streaming (no HBO Max): O Esquadrão Suicida.
Os dois filmes são assinados por diretores da mesma geração reconhecidos pela mistura de violência gráfica e trilha sonora — no primeiro caso, o inglês Guy Ritchie, 52 anos, de Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes (1998) e RocknRolla: A Grande Roubada (2008); no segundo, o estadunidense James Gunn, 55, de Guardiões da Galáxia (2014) e Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2017).
Os dois filmes são estrelados por atores ingleses acostumados aos gêneros ação e policial: respectivamente, Jason Statham, 54 anos, que tem no currículo as franquias Carga Explosiva, Os Mercenários e Velozes & Furiosos, e Idris Elba, 48, o protagonista do seriado Luther e o Heimdall do Universo Cinematográfico Marvel. (Por curiosidade, os dois contracenaram em Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw, de 2019.)
Os dois filmes reúnem um bando de personagens que não são nada exemplares, a menos que o critério seja a capacidade de matar e infligir o mal — de assaltantes a pistoleiros, de ex-militares a ditadores, passando por oficiais que autorizam métodos fora da lei, praticamente ninguém poderia se enquadrar na categoria de mocinho (com as exceções, é claro, do inocente notório que vira uma vítima tanto em um título quanto no outro).
Nos dois filmes, os bandidos e vilões — ou anti-heróis, vá lá — usam de linguajar chulo e depreciativo, encaram ou praticam sessões de tortura e vertem um banho de sangue que inclui decapitações e tiros na cabeça.
Nos dois filmes, a trama é dividida em capítulos intitulados (tipo A Dark Spirit ou Bring me the Heads of the Suicide Squad), com flashbacks que contextualizam ações, explicam motivações e trazem revelações.
E os dois filmes fazem uso de Folsom Prison Blues (1955), um dos clássicos da música country compostos e gravados por Johnny Cash (1932-2003), que era chamado pelos fãs de O Homem de Preto não apenas pelo figurino adotado, mas também por suas letras carregadas de tristeza e perturbação moral — "Quando eu era só um bebê / Minha mãe me disse: filho / Sempre seja um bom menino, / Nunca brinque com armas de fogo / Mas eu atirei num homem em Reno / Só para vê-lo morrer / Agora toda vez que escuto aquele apito (referência ao trem que passa perto da penitenciária) / Eu seguro minha cabeça e choro", dizem os versos da música em questão.
Mas a forma como aparece Folsom Prison Blues estabelece uma diferença crucial entre os dois filmes.
James Gunn lança mão da canção logo no início, na apresentação do personagem Sábio (Michael Rooker) e de seu cotidiano na prisão de Belle Reve, e a levada original acentua a comicidade que marcará o restante de O Esquadrão Suicida.
Guy Ritchie introduz Folsom Prison Blues mais para o meio da história, em uma versão remixada que a aproxima da trilha composta para o filme por Christopher Benstead: o clima é absolutamente soturno, com pontadas musicais sincronizadas às explosões de brutalidade vistas em cena, sem muita margem para o riso — a não ser de nervoso ou de doentio. Ainda que haja aquele tipo de piada cheia de testosterona que caracteriza tanto a obra de Ritchie quanto a filmografia de Jason Statham, Infiltrado está longe do deboche e da algazarra associados ao diretor. E fora essa do Johnny Cash, não há outras canções a embalar a ação. Mas temos, novamente, uma história de ambição e vingança e um desfile de atores bacanas — o time de coadjuvantes conta com Eddie Marsan, Josh Hartnett, Andy Garcia, Holt McCallany, Jeffrey Donovan, Laz Alonso, Scott Eastwood, Darrell D'Silva e Babs Olusanmokun.
Com roteiro escrito por Ritchie em parceria com Ivan Atkinson e Marn Davies, o tenso Infiltrado é baseado no filme francês Assalto ao Carro Forte (2004), de Nicolas Boukhrief. Trata-se da quarta parceria do diretor com Statham, revelado em Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e visto também em Snatch: Porcos e Diamantes (2000) e Revólver (2005).
Antes de o personagem do ator, Harry, surgir, procurando emprego em uma empresa de carros-fortes que movimenta grandes quantias de dinheiro em Los Angeles, Ritchie orquestra um assalto que ditará todos os rumos do filme. Como se fosse um cortejo fúnebre — noção realçada pela música de Benstead —, um desses veículos trafega pelas ruas da cidade californiana até ter seu trajeto interrompido por um grupo de operários. Observamos tudo de dentro do carro-forte, às costas do motorista e do outro transportador, e a câmera permanece nessa posição enquanto ocorre o ataque e ouvimos diálogos que sugerem: algo fugiu ao planejado.
Só voltaremos à cena do crime bem mais tarde, e em mais de um momento, para vê-la de diferentes pontos de vista e enfim entendermos melhor quem é quem em Infiltrado, o que aconteceu e o que deverá acontecer. Se há certa previsibilidade, Guy Ritchie embaralha as cartas de um modo que garante o interesse pelo jogo, pelas trapaças e pelos canos fumegantes. E das mãos de Jason Statham vem aquilo que se espera e que esperamos: aquele jeito elegante de cometer barbaridades, acompanhado por aquele olhar fuzilante e aquela voz rouca capazes de desarmar os oponentes sem que ele precise levantar um dedo sequer.