Ticiano Osório

Ticiano Osório

Jornalista formado pela UFRGS, trabalha desde 1995 no Grupo RBS. Atualmente, é editor em Zero Hora e escreve sobre cinema e seriados em GZH e no caderno ZH2.

Polêmica

As pessoas deveriam ver o filme "Mignonnes (Cuties)" antes de pedir cancelamento

Premiado longa-metragem de diretora franco-senegalesa está sendo acusado de sexualizar meninas de 11 anos

Ticiano Osório

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Netflix / Divulgação
Fathia Youssuf (D), que faz a protagonista, Amy, com as integrantes do grupo de dança Mignonnes

Mignonnes (Cuties no título em inglês) é o filme polêmico da vez. Adicionado ao catálogo da Netflix na quinta-feira (10), provocou o surgimento de uma hashtag no Twitter que pede o cancelamento da plataforma de streaming. O motivo é um retrato supostamente sexualizado de meninas de 11 anos, um suposto incentivo à pedofilia. Só que o longa-metragem da franco-senegalesa Maïmouna Doucouré, vencedora do prêmio de Melhor Direção no Festival de Sundance (Estados Unidos), apresenta-se como uma crítica à hipersexualização das crianças e uma defesa da infância.

A Netflix, vale frisar, ajudou a fomentar a controvérsia. O cartaz com o qual anunciou a estreia mundial de Mignonnes é muito diferente do pôster usado na França. Neste último, que parece uma alusão ao seriado Sex and the City, as personagens  estão em uma rua, carregando sacolas de compras e vendendo uma imagem de alegria – consumista, mas alegria. Na divulgação da Netflix, o que elas vendem é outra coisa. Vestidas com figurinos curtos, as garotas dançarinas fazem poses, digamos, sensuais, como se fosse uma versão mirim de Showgirls (1995) e Magic Mike (2012), duas produções sobre strippers. 

Tanto as roupas quanto o gestual não foram inventados exclusivamente para o famigerado cartaz - aparecem em cena, mas dentro de um contexto. A peça publicitária já foi retirada de circulação pela Netflix, que pediu desculpas públicas à diretora: "Não é ok e não representa o filme". Maïmouna disse que chegou a receber ameaças de morte. Deveria receber agradecimentos. Como a cineasta de 35 anos advoga, Mignonnes faz soar o alarme.

Reprodução / Twitter
O cartaz original francês e o primeiro pôster de divulgação da Netflix

Baseado em sua experiência pessoal, o filme é protagonizado por uma menina francesa de ascendência senegalesa, Amy (em tocante interpretação de Fathia Youssuf), que mora com a mãe e os dois irmãos menores em um apartamento no subúrbio. Aos 11 anos, ela está no meio de um turbilhão hormonal, social, emocional. Começa a lidar com sua sexualidade, seu corpo e a primeira menstruação ao mesmo tempo em que precisa se adaptar à nova escola –  no processo não raro complicado de inserção e aceitação entre as colegas – e sofre os impactos de uma mudança na estrutura familiar: seu pai está vindo do Senegal com uma segunda esposa.

É por isso que no início do filme, quando estão prestes a sair para um culto muçulmano, a mãe interdita para os filhos um quarto da casa. Na intimidade, a mãe chora a decisão do esposo, mas a aceita, pois sua religião permite a poligamia e prega, como Amy ouve em meio às orações, que as mulheres "devem obediência aos maridos" – e que, no inferno, serão muito mais numerosas do que os homens.

A dança, então, mostra-se para Amy um meio não apenas de expressão, mas um espaço para acomodar suas angústias, conquistar amigas (as Mignonnes do título) e confrontar o conservadorismo religioso. O conflito geracional é sintetizado em uma cena antológica: durante uma oração coletiva, Amy esconde-se sob o véu islâmico para assistir, no celular, a clipes eróticos.

Portanto, a protagonista de Mignonnes combate um tipo de opressão às mulheres, a religiosa, com outro tipo de opressão: a cultural. Maïmouna Doucouré retrata como é, para meninas, crescer em uma sociedade que objetifica o corpo feminino. O que as gurias do grupo Mignonnes fazem é simplesmente imitar as coreografias a que são expostas em uma infinidade de vídeos musicais – embora a diretora pudesse ter sido mais comedida do ponto de vista gráfico, evitando closes, o que não tiraria a força de sua denúncia. Essa exposição é potencializada pela vida em ambiente digital, muitas vezes longe do olhar dos pais, em um território – o das redes sociais – que também estimula o exibicionismo competitivo e, por fim, a sexualização precoce, a adultização. Parece que estamos tão acostumados a isso, que atacamos o mensageiro (o filme) e não sua mensagem – a crítica a essa normatização. Afinal, somos nós, os adultos, os responsáveis na história. Nós é que podemos – e devemos – proteger a infância. Como pais, não nos é permitido ficar alheios ao que as crianças consomem na internet. É necessário assistir juntos, discutir, com elas, os conteúdos, proibir quando for o caso. 

Não à toa – e aqui vale um aviso sobre SPOILERS –, Mignonnes termina com uma cena que devolve Amy à inocência e à alegria infantis. Depois de cometer um ato de violência para participar, com as Mignonnes, do concurso de dança (no qual surgem os polêmicos trajes e poses), a protagonista tem uma espécie de epifania. Ainda no palco, suas caras e bocas erotizadas, subitamente,  são substituídos pelo choro e por um olhar de espanto. A protagonista percebe que aquele não é seu lugar nem seu tempo. Corre para casa, abraça a mãe, troca a roupa e, depois, vai brincar de pular corda com outras crianças. A câmera sobe, Amy sai de quadro, mas seu rosto ressurge, em câmera lenta, a cada salto dado pela menina. O largo sorriso que vai se desenhando traduz muito bem a mensagem do filme polêmico da vez.


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