Pediatra que tem no currículo 30 anos de experiência em consultório no Rio, atuação como conferencista internacional sobre temas como saúde da criança e da família e relação entre pais e filhos e colaborações para a Organização Mundial da Saúde, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e os Médicos Sem Fronteiras, Daniel Becker é o próximo convidado da Escola de Pais, o ciclo de palestras realizado no Instituto Ling, em Porto Alegre (Rua João Caetano, 440). Na segunda-feira (10), das 19h às 20h30min, ele vai falar sobre como nosso estilo de vida atual impacta o desenvolvimento dos filhos. Os ingressos, a R$ 170, estão praticamente esgotados, mas um novo lote pode ser consultado neste link.
Por estilo de vida atual, Becker entende, por exemplo, uma distância da natureza e do diálogo e um apego ao trabalho e à tecnologia, que se traduzem em um ritmo apressado. Ele mesmo sofre com a correria, como admitiu na entrevista concedida por meio de áudios de WhastApp, entre a rotina com os pacientes e as aulas que ministra na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os riscos do excesso de telas, da adultização e do que ele chama de entronização, assim como a importância das brincadeiras entre crianças e da convivência em família, foram alguns dos temas abordados pelo médico de 60 anos, que é divorciado e tem dois filhos já crescidos.
— Agora estou namorando firme há dois anos e meio e tenho um enteado de oito anos que é a minha segunda chance de fazer quase tudo errado de novo — brinca.
Vivemos com medo, abandonamos a praça e o parque, estamos extremamente afastados da natureza, vamos aos shoppings, por segurança. Confinamos as crianças nesse mundo de quatro paredes. Nesse confinamento, que já é por si só um prejuízo, ainda enchemos a agenda delas de compromissos, porque os pais estão trabalhando o dia inteiro. Então, a criança está sempre cercada de cimento e de consumismo.
O tema de sua palestra será como nosso estilo de vida atual impacta o desenvolvimento dos filhos. Primeiramente, gostaria que o senhor falasse sobre o que entende como nosso estilo de vida atual.
Nosso estilo de vida atual, extremamente urbano, tem seus privilégios, seus benefícios, digamos assim: podemos viver na cidade, com alta densidade tecnológica e muito conforto no caso das classes mais abastadas. Mas há uma situação grave de desigualdade no Brasil. Por causa da violência que ela envolve, abrimos mão de tudo o que é público. Da educação pública, da saúde pública, do transporte público, do espaço público. Vivemos com medo, abandonamos a praça e o parque, estamos extremamente afastados da natureza. Confinamos as crianças nesse mundo de quatro paredes. Nesse confinamento, que já é por si só um prejuízo, ainda enchemos a agenda delas de compromissos, porque os pais estão trabalhando o dia inteiro, ou então acabamos colocando os filhos em creches e escolas por 10, 12 horas. Há quem contrate babás, mas essas ficam muito em casa, as famílias tendem a ficar mais em casa ou ir ao shopping, pela segurança dos shoppings. Então, a criança está sempre cercada de cimento, de publicidade, de consumismo. Outra característica desse estilo de vida é o uso da alimentação industrializada, se afastando da natureza também na mesa. Isso tem um custo, porque essa alimentação é rica em substâncias nocivas, em excesso de açúcar, de sal, de gordura vegetal, corantes, conservantes. Os pais não têm tempo para cozinhar em casa, estão sempre trabalhando e, à noite, ou estão cansados, ou assumem outros compromissos, o que gera falta de convivência com os filhos. E existe ainda o excesso de telas, porque é difícil você conter, em casa, a energia natural de uma criança, que precisa se expandir, precisa correr, pular, brincar. As telas estão sendo usadas precocemente, onipresentemente. Tudo isso leva a prejuízos já mensuráveis à qualidade de vida, ao comportamento, ao desenvolvimento, afetando não só a felicidade da criança como o adulto em que ela se transformará.
Quais são os efeitos visíveis nas crianças e que adultos corremos o risco de estar formando?
A combinação de todos esses fatores revela uma infância sob forte ataque, sob opressão. E as crianças apresentam os sintomas. Começam a engordar, a não dormir direito, a se comportar mal, vão mal na escola, ficam agitadas, hiperativas, e mais tarde a coisa pode se agravar, indo na direção do adolescente que se isola, que tem dificuldade de relacionamento, que tem pensamentos depressivos.
Brincar é a essência da infância, é como a criança se torna mais feliz e mais capaz de aprender o mundo, aprender a ler o mundo, a ler as relações e desenvolver uma série de habilidades, como coragem, agressividade, colaboração, negociação, resolução de problemas. A brincadeira prepara a pessoa do futuro.
Muitos pais, por falta de tempo, precisam deixar seus filhos em creches ou escolas em turno integral, ou então enchem as agendas das crianças de atividades para cobrir um suposto tédio delas em casa. Como o senhor vê essa questão?
Os pais, muitas vezes, não têm alternativas: os dois trabalham. Quando têm possibilidade de ter alguém para ficar com a criança em casa, parente ou empregada, é bem melhor do que colocar na escola em tempo integral. E melhor ainda é não colocar o filho em muitas atividades. Esse excesso de adultização, de escolas de tempo integral, aulinha disso e aulinha daquilo, de temas de casa que precisam de duas horas para serem feitos, isso tudo vai transformando a criança em uma espécie de executivo, e a infância acaba. Estamos criando crianças que deixam de ser crianças, portanto, deixam de ser felizes e vão se tornando adolescentes e adultos deprimidos e com dificuldade de lidar com a vida. É fundamental, na infância, tempo para brincar livre. Essa é a essência da infância, é como a criança se torna mais feliz e mais capaz de aprender o mundo, aprender a ler o mundo, a ler as relações e desenvolver uma série de habilidades, como coragem, agressividade, colaboração, negociação, resolução de problemas. E a criança só aprende brincando com outras crianças, sem supervisão, a não ser a supervisão distante do adulto, de segurança, mas é fundamental que ela tenha esse direito à liberdade. A brincadeira prepara a pessoa do futuro.
Essa falta de tempo também gera falta de convivência, um outro problema, não?
A convivência é uma das questões mais importantes. Hoje, quando falamos de família, estamos falando de algo que tem muitas configurações. Pode ser pai e mãe, pai e pai, mãe e mãe, mãe e avó, mas a convivência dos cuidadores com a criança é o pilar da formação da sua personalidade, a partir das memórias afetivas que ela vai guardar dessa convivência. Para os cuidadores, a convivência é o que dá intimidade, o que leva à sensação de fluxo de se sentir em casa com a criança, a poder educar com mais facilidade, sem violência, com carinho, com orientação, a compreender o que a criança quer. Sem intimidade, muitas vezes a gente desconhece a criança, fica com medo das reações dela, facilita demais, fica permissivo ou fica autoritário, temos essas duas tendências. A convivência e a intimidade evitam este tipo de coisa. A criança vem, sim, com um manual. Essa frase é muito bonita: "Existe um manual que vem com o filho, vem dentro dele, não está na internet". A convivência é a tradução desse manual, para que a gente possa aprender e se tornar um pai e uma mãe melhores.
A criança tem de participar das decisões da família, mas ela não pode comandar. A entronização acontece quando uma família fica em casa no fim de semana, em vez de ir para a praia, porque a criança queria jogar videogame. Quando não tem legumes na geladeira porque a criança não come, então os pais nem compram, dão miojo e nuggets porque é do que ela gosta.
Em palestra no TED, o senhor diz que um dos pecados contra a infância é a "entronização". Pode falar sobre ela?
Chamo de entronização quando a criança se torna uma rainha do lar. Os adultos não têm controle sobre a própria vida, o entregam aos filhos. A criança tem de participar das decisões, mas ela não pode comandar. Entronização acontece quando uma família fica em casa no fim de semana, em vez de ir para a praia, porque a criança queria jogar videogame. Quando não tem legumes na geladeira porque a criança não come, então os pais nem compram, dão miojo e nuggets porque é do que ela gosta. Uma criança de três anos não pode comandar, nem tem discernimento para isso. Mas elas percebem que os pais abrem mão do controle, uma decisão tomada em nome da superproteção, para não frustrar a criança, que percebe isso e fica ansiosa, irritada, birrenta. Quanto mais deixamos o controle na mão dela, mais ela fica angustiada. Ela precisa ter a sensação de que os pais estão no comando.
Essa incapacidade de frustrar, essa incapacidade de dizer não, de colocar limites, faz parte de um sistema que tem a ver com a vida moderna, com a falta de convivência, mas também com o reposicionamento dos pais pela mídia. Esta tende a tirar a autoridade dos pais. Em desenhos animados dos últimos 20 anos, muitas vezes só tem pai bobo, mãe idiota ou pais ausentes, como, por exemplo, em Os Simpsons.
Pais costumam dizer que o trabalho consome tanta energia que, quando chegam em casa, querem evitar desgastes, e isso pode acabar levando a não impor limites, a não comprar briga com as crianças. Qual é a importância do "não"? Será que pais o evitam para não serem considerados autoritários, em oposição a gerações anteriores e em consonância à ideia de família mais liberal que é vendida como sinônimo de felicidade?
Essa incapacidade de frustrar, essa incapacidade de dizer não, de colocar limites, de forma dialógica, faz parte de um sistema que tem a ver com a vida moderna, com a falta de convivência, mas também com o reposicionamento dos pais pela mídia. Esta, mediante a publicidade, tende a tirar a autoridade dos pais. Em desenhos animados dos últimos 20 anos, muitas vezes só tem pai bobo, mãe idiota ou pais ausentes, como, por exemplo, em Os Simpsons. Essa perda de autoridade não raro se reflete no contexto das famílias. A gente pode abrir mão de muitas bobagens. Mas uma família que abre mão de bobagens para não entrar em briga tem de escolher os conflitos que devem ser mantidos. Nas coisas fundamentais, a criança tem de ter a clareza de que quem manda são os pais. E é possível ter autoridade sem ser autoritário. A autoridade é serena, não é grito, muito menos violência. Antigamente, as famílias agiam sob um estilo "é assim ou assim", e quem desafiasse os pais entrava no chinelo, no castigo físico ou psicológico. A gente evoluiu, temos novas filosofias educacionais, muita coisa está sendo escrita e ensinada sobre parentalidade e como criar filhos. Não precisamos apelar para métodos autoritários e castigos, mas também a gente não deve ser permissiva. Permissividade é diferente de liberalidade. Uma educação com respeito, diálogo e serenidade, com disciplinas positivas, com o estímulo à autonomia como ocorre na escola montessoriana, é muito mais interessante do que uma educação permissiva. Podemos dar limites sem dar palmadas.
Existe a hora para o "sim", para ceder à vontade dos filhos?
Muitas vezes, é possível dizer sim, é preciso dizer sim, tanto para que a vida possa ser menos conflituosa quanto para você ter uma rotina, uma educação que seja flexível, em que a criança possa participar, dizer o que ela quer, do que ela precisa, do que ela gosta, e a gente possa acomodar isso também num sistema de rotina, princípios e valores familiares que seja claro para ela. A criança também pode participar dessa construção no dia a dia. Que a gente possa dizer sim porque ela quer ou ela precisa, contanto que ela tenha os limites e o não, ditos de uma maneira equilibrada, nas questões fundamentais, no que, por exemplo, ela não deve fazer.
O hábito de assistir a YouTube, YouTube Kids ou qualquer coisa de vídeo é muito nocivo, porque os conteúdos infantis vão adultizando a criança e enchendo-a de futilidades, de materialismo excessivo, de ostentação, de consumismo desenfreado.
Como o senhor vê o peso dos smartphones, do YouTube e das redes sociais na criação dos filhos?
A questão dos celulares, das telas, dos tablets e do YouTube eu diria que é uma das principais da criação dos filhos no mundo de hoje. A invasão das telas complexificou a paternidade e a maternidade infinitamente nos últimos 10 anos. Então, é algo que tem de ser tratado, tanto no que diz respeito ao tempo de tela quanto na questão do que a criança está fazendo na tela. O hábito de assistir a YouTube, YouTube Kids ou qualquer coisa de vídeo é muito nocivo, especialmente porque os conteúdos infantis são os piores possíveis, com estímulo ao consumismo, a prática do unboxing (desembalar bonecas, por exemplo), muitas vezes têm ofensas, humor agressivo, pastelão, muita publicidade infantil, de comida tóxica, de brinquedo infantil, de roupas de marca, que vão adultizando a criança e enchendo-a de futilidades, de materialismo excessivo, de ostentação, de consumismo desenfreado, enfim, é preciso muito cuidado com essas questões, tanto do consumo de tempo que a tela leva quanto do conteúdo. Em relação ao tempo, a gente precisa fazer acordos familiares para estabelecer sistemas de uso de telas de internet e também vigiar permanentemente o conteúdo que nossos filhos consomem. É preciso assistir junto, jogar junto, desenvolver o olhar crítico das crianças e ajudá-las a escolher melhor os conteúdos a que elas assistem, e proibir também, o que é tarefa dos pais, além de colocar os limites devidos no uso de telas. De novo, isso pode ser feito de forma dialógica, quando a criança se envolve é sempre melhor, ela participa e tem mais aderência ao sistema que é colocado.
Nesses tempos de opiniões e posições tão polarizadas, qual a melhor forma de abordar com as crianças temas do noticiário?
Pergunta complexa. Eu diria que o problema é que muitos adultos não têm olhar crítico, hoje se vive nesse tempo de fake news, de terraplanismo, de verdade absoluta de um lado e de outro, especialmente de um lado. Quem tem um pouco de bom senso, um pouco de capacidade de diálogo e de abertura para a diversidade de opiniões, de visões, deve ajudar seu filho a desenvolver isso. Ler ou assistir a um noticiário junto com a criança é muito importante para ela entender o mundo, sempre levando em consideração a possibilidade de que há opiniões dos outros que podem ser tão boas quanto a nossa, que devem ser ouvidas. Deve-se tomar cuidado e trabalhar a questão das fake news, das mentiras, da circulação de falsas notícias principalmente em grupos de WhatsApp, ajudar a criança a desenvolver o olhar crítico para o radicalismo, o fundamentalismo, para as pessoas que se posicionam na agressão e na ofensa, e não na argumentação. Ensinar uma criança a debater e argumentar. Enfim, essa pergunta é muito ampla. Basicamente, deve-se trabalhar, assistir junto à criança e conversar, para que ela desperte sua própria visão crítica.
Muitos casais querem ter filhos, mas não conseguem ter tempo de conviver com eles. Ou então não querem abrir mão de suas rotinas anteriores. Que conselho o senhor daria para eles?
Parece um pouco paradoxal. Se um casal não tem tempo para ter filhos, que não tenha filhos. Que mantenha suas atividades e suas rotinas, porque tem um apego a isso. Que brinque com os sobrinhos, com os filhos dos amigos, porque, se for para ter filhos e largá-los, abandoná-los ou negligenciá-los, é obviamente melhor não ter. Um filho vai dar uma guinada em sua vida, há necessidade de priorizá-los, eles vão ocupar um espaço enorme. Esse espaço não será mais só da mulher, dos dois. É preciso, também, acabar com a ideia de que apenas a mulher é responsável pelo cuidado. Hoje em dia a gente habita a mesma casa, tem a mesma família e divide todas as tarefas. Tem coisas que são indivisíveis e não compartilháveis, como a amamentação. Nesse começo da vida da criança, a relação primária é com a mulher, claro, mas o pai precisa estar presente. É impossível, hoje, falar em marido que ajuda: marido tem de compartilhar tudo. Os dois vão ter mais trabalho, muito mais tarefas na vida, e vão ter de dedicar parte de seu tempo e abrir mão de outras coisas, não há outra forma de ter filhos. Se não quiser abrir mão, por favor, brinque com os sobrinhos, vale mais a pena.