Em cartaz na Netflix, Bo Burnham: Inside é um dos mais geniais shows de comédia sobre o nosso tempo — não apenas o da pandemia, mas também o da vida digital, que já existia antes do coronavírus e que agora se tornou, aparentemente, ainda mais dominante sobre a real. A crítica convive com a autocrítica: volta e meia o humorista estadunidense de 30 anos pergunta se dá para fazer piada numa hora dessas, só que entabula essa reflexão fazendo piadas.
Se as músicas, apesar de temperadas por uma acentuada melancolia e com um gosto ácido ao final, são capazes de arrancar risadas, os monólogos nos intervalos refletem um estado de ânimo depressivo. Na verdade, uma melodia alegrinha e uma batida dançante podem estar acompanhadas por uma letra jururu. Trata-se de uma montanha-russa emocional erguida sobre dois impulsos comuns na era da covid-19 (nunca citada, o que confere certa atemporalidade à obra): o de trabalhar, criar, manter-se ocupado para não enlouquecer e se sentir vivo, ou o de não sair da cama e desejar "estar morto pelos próximos 18 meses".
As contradições pontuam Inside, que sucede Make Happy (2016), também disponível na Netflix e gravado durante uma turnê de stand-up na qual Burnham passou a ter ataques de pânico em pleno palco, diante do público. No novo especial, o comediante não tem plateia nem equipe. Filmou e editou tudo sozinho em sua casa, em Los Angeles, ao longo do período de distanciamento social imposto pela pandemia (a passagem de tempo é sinalizada pelo tamanho de sua barba e de seus cabelos). O isolamento e a solidão acabaram impelindo o artista a ir atrás — mesmo que virtualmente — dos espectadores de quem se afastara para se dedicar a outros projetos que não exigiam essa interação. Foram os casos, por exemplo, do show de humor Chris Rock: Tamborine (2018), para a Netflix, e e de dois filmes: Oitava Série (2018), que ele ele escreveu e dirigiu, sobre uma garota de 13 anos lidando com as mudanças no corpo e a mudança de escola, e Bela Vingança (2020), em que interpreta o namorado da protagonista vivida por Carey Mulligan.
Agora, Bo nos convida a entrar no seu lar, a estar dentro de sua sala, que, como sugere o duplo sentido do título, funciona como uma metáfora de sua própria mente — ora vazia, ora bagunçada, ora escura, ora iluminada, ora acolhedora, ora claustrofóbica. É um cenário em constante transformação (vira boate, vira academia de ginástica, vira floresta com fogueira), com um personagem sempre desconcertante: nunca sabemos se virá uma bordoada, um lamento, uma zoação. O próprio formato de Inside nos tira o chão: é um especial de comédia? É um filme? É um musical? É um monólogo? É um registro documental sobre a vida durante a pandemia? É um relato inovador sobre uma crise existencial?
Nascido Robert Pickering Burnham em Hamilton, no Estado de Massachussets, em 21 de agosto de 1990, Bo despontou em 2006, com vídeos musicais caseiros postados no YouTube, tocando violão ou teclados e versando sobre questões raciais e de gênero, sexo e religião, entre outros temas. O mesmo ambiente de compartilhamento que lhe trouxe sucesso é um dos alvos principais em Inside. A internet e as redes sociais são apresentadas como um meio de aproximação (vide a divertida FaceTime with my Mom) e de conhecimento, mas também de ódio e de futilidade, uma droga à qual recorremos com cada vez mais voracidade para ter um pouco de tudo o tempo todo.
Burnham também ataca marcas que tentam se apropriar de causas sociais para comercializar seus produtos. Satiriza Jeff Bezos, o CEO da Amazon, que ficou ainda mais rico por causa do coronavírus. Critica nossa sanha de expressar opinião sobre qualquer assunto. Condena os privilégios do homem branco, que "já falou demais por uns 400 anos" — e, aqui, evidentemente, este sujeito de 1m96cm não deixa de se olhar no espelho. Só que, de novo, há um paradoxo: por um lado, Bo admite seus pecados, sejam antigos ou novos, e ilustra como os pedidos de desculpas que vêm sendo feito por celebridades como ele são, não raro, pedidos de adulação; por outro, o comediante exala alguma autocomiseração — aliás, já houve inclusive quem comparasse seu visual, com barba e cabelos compridos, ao de Jesus Cristo. Mas, como ele diz quando reage ao momento em que está reagindo a sua própria reação a uma de suas canções, assumir que é um babaca não faz com que você deixe de ser um babaca.
Entre tantas tiradas e músicas certeiras (reunidas em dois discos lançados nas plataformas de streaming), difícil escolher qual é a mais brilhante, a mais provocativa, a mais representativa das contradições encenadas em Inside. Há duas candidatas fortes, até por conta do caráter grudento de seus versos. Com levada sensual (a propósito: os brincos em formato de crucifixo remetem àqueles usados por George Michael no clipe de I Want Your Sex), Sexting começa fazendo piada sobre a troca de mensagens eróticas e diz, no refrão, que "isso não é sexo, mas é a segunda melhor coisa". A coda, porém, é triste: "Another night on my own, yeah / Stuck in my home, yeah / Sitting alone / One hand on my dick and one hand on my phone, yeah" (Outra noite sozinho, sim / Preso na minha casa, sim / Sentado sozinho / Uma mão no meu pau e a outra no meu telefone, sim).
Já em White Woman's Instagram, Burnham zomba dos perfis femininos que vendem uma imagem de paraíso: "An open window / A novel, a couple holding hands / An avocado / A poem, written in the sand / Fresh-fallen snow on the ground / A golden retriever in a flower crown / Is this Heaven? / Or is it just a / White woman / A white woman's Instagram" (Uma janela aberta / Um romance, um casal de mãos dadas / Um abacate / Um poema escrito na areia / Neve recém-caída no chão / Um golden retriever com uma coroa de flor / Isso é o paraíso? / Ou é apenas uma / Mulher branca / O Instagram de uma mulher branca). Bo faz o papel de várias mulheres nesse hilariante clipe gravado com uma moldura que simula o enquadramento do Instagram.
Contudo, a câmera se abre quando o comediante descreve uma legenda emotiva de luto: "Eu não posso acreditar. Já se passou uma década desde que você partiu. Mamãe, eu sinto sua falta. Sinto falta de sentar com você no jardim da frente. Ainda descobrindo como continuar vivendo sem você. Ficou um pouco melhor, mas ainda é difícil. Mamãe, tenho um emprego que adoro e meu próprio apartamento. Mãe, eu tenho namorado e sou louca por ele. Sua garotinha não se saiu muito mal. Mãe, eu te amo. Dê um abraço e um beijo no papai".
Por alguns instantes, vemos a cena por inteiro, ocupando todo o espaço da tela. É como se Bo Burnham reconhecesse que no meio do exibicionismo e da superficialidade do Instagram também há lugar para demonstrações de honestidade e vulnerabilidade. "Como alguém que começou a se apresentar na internet, Burnham entende que a maioria das postagens no Instagram são performances em si", escreveu Alec Bojalad no site Den of Geek. "Mas, assim como ocorre em suas próprias performances, às vezes algo sincero, algo real se esgueira por si mesmo."
Daí que as cenas finais de Inside nos desnorteiam. Sob o signo da contradição que pauta o especial, Bo indaga se estamos nos divertido ou se estamos nervosos. Risadas enlatadas acompanham um momento de pânico seu. O quanto o que ele conta e canta tem de confissão e de criação? Estamos diante de um palco ou dentro da cabeça de Bo Burnham? Dá para fazer piada quando ninguém está rindo ao fundo?