Depois das homenagens a Freddie Mercury (Bohemian Rhapsody), Elton John (Rocketman), Beatles (Yesterday) e Bruce Springsteen (A Música da Minha Vida), chegou a vez de George Michael (1963-2016). Last Christmas, uma canção deliciosamente pegajosa de 1984, quando o astro ainda formava com Andrew Ridgeley a dupla Wham!, inspira e empresta o título (no original) a Uma Segunda Chance para Amar, filme em cartaz nos cinemas desde quinta-feira (28). Também é celebrado ao longo de quase toda a trilha sonora – o que por si só já me faria comprar um ingresso –, a começar por uma versão comovente de Heal the Pain ("Let me tell you a secret, put it in your heart and keep it...") por um coral infantil em uma igreja. Uma legenda sinaliza o primeiro erro do filme: indica o local e o ano como a Iugoslávia de 1999, mas naquela época o país já não existia mais com esse nome.
A solista, depois de crescida, não cumpriu o futuro radiante que seu talento prometia. Agora na Londres de 2017, Katarina prefere ser chamada de Kate e é uma garota de 20 e tantos anos atrapalhada em tudo: atrasa-se para o teste em um musical, e por conta disso esquece de trancar a porta da loja de traquitanas natalinas onde trabalha, o que resultará em um assalto; na vida pessoal, por causa de uma briga com a mãe, precisa ficar dormindo de favor na casa de amigas ou se envolvendo com qualquer homem que lhe oferecer uma bebida.
A personagem é interpretada por outro chamariz do filme dirigido pelo americano Paul Feig (o mesmo de Missão Madrinha de Casamento): Emilia Clarke, a Daenerys Targaryen do seriado Game of Thrones. Como ela se sai trocando a gravidade pela comédia, os dragões pelos elfos de Natal? Para mim, os ares de Westeros fazem melhor à atriz britânica, que, em Uma Segunda Chance para Amar, dispara suas frases como se fossem o fogo que seus dragões despejavam – ela queima as piadas. É nítido o esforço de Emilia em se descolar da imagem da poderosa Daenerys, mas esse esforço tira a naturalidade que dá charme a outras comédias românticas inglesas. Por exemplo, lembrem-se de Rachel McAdams em Questão de Tempo, ou Lilly James em Yesterday, ou então uma "parente" mais próxima de Kate, a Bridget Jones encarnada por Renée Zellweger.
Para piorar, não há química entre Kate e aquele que passa a ser seu inusitado par, Tom (Henry Golding, de Podres de Ricos), um dublê de ciclista entregador e de voluntário junto aos sem-teto, que por vezes aparece e por outras some no dia a dia da protagonista. A essa altura do filme, o que o salvava era escutar a música e a voz de George Michael, mas mesmo aqui houve decisões duvidosas (ou aleatórias: Freedom! '90 não tem a ver com o momento que embala), que parecem fazer jus à comparação estabelecida por Kate em relação a seu ídolo: "Ambos somos cantores incompreendidos e subestimados". Pois bem: sexo, um elemento fundamental na obra do compositor, foi deixado de lado (não espere ouvir I Want your Sex, Father Figure, Outside), enquanto Last Christmas e Heal the Pain aparecem repetidas vezes, como se Michael não tivesse outros versos relevantes ou que pudessem comentar a trama. E, apesar de a letra casar bem com a história, a cortante A Different Corner não foi convidada.
Mas sempre há um mas – ou dois, no caso de Uma Segunda Chance para Amar. Quem só conhece o George Michael das baladas românticas e das pistas de dança pode estranhar sua conexão com os temas sociopolíticos abordados pelo roteiro coescrito por Emma Thompson, que também é uma das produtoras e atua no filme (faz a mãe de Kate). Mas a biografia e mesmo o repertório do artista ilustram sua ligação e seu comprometimento com questões como a desigualdade social (vide Praying for Time, presente na trilha, e a regravação de Brother Can You Spare a Dime?, hino dos desvalidos da Grande Depressão nos Estados Unidos dos anos 1930) e o combate à xenofobia (nascido Georgios Kyriacos Panayiotou, era filho de um cipriota radicado na Inglaterra e namorou um estilista brasileiro e um cabeleireiro libanês). Foi um crítico dos primeiros-ministros Margaret Thatcher e Tony Blair (atacou diretamente este último em Shoot the Dog, na qual condena um comportamento supostamente servil do britânico para com o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush). Envolveu-se em causas humanitárias internacionais e praticou a caridade em segredo – após a sua morte, vieram à tona histórias de doações polpudas e até de um trabalho voluntário prestado em um abrigo para moradores de rua.
Esse coração generoso e comunitário de George Michael é reverenciado pelo filme, que enaltece a empatia e a solidariedade ("Ajudar aos próximos é o que nos traz felicidade", diz um personagem) e posiciona-se contra o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia. O abraço à diversidade étnica, religiosa e cultural – o que é uma característica londrina – é expressado nos cenários (as fachadas de lojas de imigrantes, a feira com comidas típicas) e, sobretudo, no elenco. Henry Golding é malaio, assim como Michelle Yeoh, a dona da loja natalina (que vai ter um romance com um alemão), e entre os demais coadjuvantes há descendentes de africanos, caribenhos, indianos, paquistaneses. O que trunca um pouco a mensagem é o fato de a deveras britânica Emma Thompson interpretar uma refugiada iugoslava, com um sotaque carregado a ponto de soar como deboche.
O outro porém positivo de Uma Segunda Chance para Amar também se fez acompanhar de um tropeço – desta vez, a culpa não é dos roteiristas, nem dos atores ou do diretor. Aliás, Paul Feig chegou a reclamar publicamente da lambança que o marketing cometeu: o trailer entrega demais da trama. É por isso que não o coloquei no encerramento desta coluna, contrariando um hábito meu. Trata-se de uma virada, que, embora não seja exatamente uma inovação dramatúrgica, me pegou desprevenido. Desarmado pela ignorância e sem a proteção do ceticismo – eu sou fã de comédias românticas, vale lembrar –, só me restou a alternativa de cair no choro. Acho que até funguei. Mas George Michael merecia mais.