Em menos de um ano, estrearam no Brasil quatro filmes que celebram grandes nomes do rock. Os dois primeiros foram as cinebiografias de Freddie Mercury (Bohemian Rhapsody) e Elton John (Rocketman). Depois, vieram as inventivas homenagens aos Beatles (Yesterday) e a Bruce Springsteen – A Música da Minha Vida, em cartaz desde quinta-feira (19) nos cinemas. Além de ser o único dos quatro que não se dedica a um astro britânico (The Boss, você sabem, é Born in the U.S.A.), é também, como reparou meu colega de redação em GaúchaZH Carlos André Moreira, o único que não teve a sorte de conservar seu título original ao desembarcar aqui, onde recebeu um bem genérico.
A escolha do nome Blinded by the Light (cego pela luz) já dá mostra da singularidade do filme em que a diretora inglesa de ascendência indiana Gurinder Chadha – a mesma do premiado Driblando o Destino (Bend It Like Beckham, de 2002) – adapta a história real do jornalista Sarfraz Manzoor. A exemplo das reverências a Freddie, Elton, Paul, John, George e Ringo, ela poderia ter batizado o longa de Badlands, Born to Run, Hungry Heart ou Dancing in the Dark, canções bastante populares de Bruce que aparecem em cena e cujas letras espelham o contexto da trama (e que serão citadas, traduzidas, neste texto). Mas Chadha optou por Blinded by the Light (1973), o primeiro single do cantor e compositor americano, nunca vista no topo das paradas de sucesso.
O filme se passa na Inglaterra de 1987, convulsionada pelo desemprego – sobretudo na indústria – e pelo arrocho nos gastos públicos, consequências da política econômica adotada pela primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013), reeleita naquele ano para um terceiro mandato. Nesse cenário, as letras de Springsteen, um notório porta-voz da classe operária, tocam em cheio Javed (Viveik Kalra), um adolescente de família paquistanesa na cidadezinha de Luton, "terras ruins" como aquelas cantadas pelo ídolo recém-descoberto. A música torna-se uma aliada, sobretudo quando o pai, Malik (Kulvinder Ghir), é demitido da fábrica de automóveis, em decorrência do incentivo às importações pelo governo do Reino Unido. Aí, a mãe, Noor (Meera Ganatra), precisa trabalhar dobrado como costureira para garantir o sustento da casa, onde também moram a irmã de Javed e uma prima.
Aos problemas financeiros, somam-se muitos outros. Em casa, Javed sofre com o apego do pai às tradições e sua subserviência herdada do colonialismo ("Nós temos de manter a cabeça baixa", Malik diz, enquanto o filho sente-se nascido para correr) – o choque geracional é um dos motores mais potentes do filme. Na rua, sofre com o preconceito e o racismo para com os imigrantes asiáticos – alvos de pichações, passeatas e até agressões xenofóbicas. Em seu íntimo, sofre com as inquietações típicas da adolescência, como a urgência peio primeiro beijo em uma garota – a ativista Eliza (Nell Williams) atiçará seu coração faminto – e as aspirações profissionais: Javed sonha em ser um escritor ou um jornalista, no que é estimulado pela professora (Hayley Atwell).
Tal qual a mãe do protagonista, Gurinder Chadha é habilidosa ao costurar esses elementos e não pesa a mão. Seu filme tem delicadeza, tem humor, tem fantasia – os números musicais remetem a videoclipes dos anos 1980, com figurantes dançando e coadjuvantes se juntando ao coro. Embora o amigo sikh que apresenta Springsteen a Javed seja pouco desenvolvido (não sabemos direito, por exemplo, como ele descobriu o artista), os personagens são bem trabalhados e merecem seus solos – destaque para a cena em que durão Malik, pintando os cabelos para o casamento da sobrinha, desaba em toda a sua vulnerabilidade. Embora aqui e ali A Música da Minha Vida escorregue para um certo didatismo moral, é bonito ver letras escritas por um americano de subúrbio ressoando para um garoto inglês de origem paquistanesa, e também é bonito, apesar de preocupante, que os versos e os discursos de Springsteen permaneçam tão atuais e vigorosos. A transformação do mundo em um lugar melhor e mais justo não vem de quem tem o poder para isso – quando ele canta, em Dancing in the Dark, que "você não pode começar um incêndio sem uma faísca", dá para pensar em Greta Thunberg, a adolescente sueca que virou símbolo na luta pela preservação do ambiente, e nas tantas lideranças comunitárias que se empenham para trazer qualidade de vida às favelas brasileiras. Segue muito necessário o apelo com o qual Bruce encerrava seus shows: "Ninguém vence a não ser que todo mundo vença".