A ferrovia subterrânea de The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade, em cartaz no Amazon Prime Video, concretiza uma metáfora e pode ser vista como outra. Concebida por Barry Jenkins, diretor e roteirista de Moonlight, vencedor dos Oscar de melhor filme, roteiro adaptado e ator coadjuvante (Mahershala Ali) em 2017, a minissérie em 10 episódios é a adaptação do romance homônimo escrito por Colson Whitehead e ganhador, também em 2017, do prêmio Pulitzer, centenária distinção outorgada pela Universidade de Columbia, em Nova York.
Com um orçamento de US$ 150 milhões que se enxerga na riqueza de detalhes (dos cenários aos figurinos) e na centena de nomes do elenco, The Underground Railroad insere-se em duas tendências na produção audiovisual estadunidense. Trata-se de mais uma obra no streaming assinada por um realizador que adquiriu prestígio no cinema — depois de Moonlight, Jenkins fez Se a Rua Beale Falasse (2018), premiado com o Oscar de atriz coadjuvante (Regina King) e indicado nas categorias roteiro adaptado e trilha sonora. Segue o exemplo do seriado The Crown (no ar desde 2016), que teve quatro episódios da primeira temporada dirigidos por Stephen Daldry, da série Ela Quer Tudo (2017-2019), de Spike Lee, dos filmes O Irlandês (2019), de Martin Scorsese, de Mank (2020), de David Fincher, e da antologia Small Axe (2020), de Steve McQueen.
E é mais uma obra que busca refletir sobre a herança nefasta da escravidão, sobre os grilhões do racismo e sobre as corrompidas narrativas a respeito do passado do país, como as quatro que ganharam ou disputaram estatuetas no Oscar 2021: A Voz Suprema do Blues, Judas e o Messias Negro, Uma Noite em Miami e Estados Unidos Vs Billie Holiday. Dessa lista, fazem parte outro título premiado com o Oscar, 12 Anos de Escravidão (2013), de Steve McQueen, os filmes recentes de Spike Lee (Infiltrado na Klan e Destacamento Blood, este último bancado pela Netflix) e os thrillers Corra! (2017) e Nós (2019), de Jordan Peele. Este último, como Jenkins, também trabalhou em plataformas e canais pagos: criou para a TBS a comédia The Last O.G. (2018), sobre um ex-presidiário (Tracy Morgan) que retorna ao Brooklyn, desenvolveu para a CBS uma nova versão do seriado The Twilight Zone, o Além da Imaginação, e é um dos produtores executivos de Lovecraft Country, na HBO, que mistura terror sobrenatural, ficção científica e tensão racial.
A trama de The Underground Railroad se passa na metade do século 19, antes da Guerra Civil nos EUA (1861-1865), que tinha como principal causa a escravização da população negra — a maioria dos Estados do Sul queria manter, o Norte era contra. Sua protagonista é Cora (interpretada de forma assombrosa pela sul-africana Thuso Mbedu), uma jovem escrava que, após relutar, tenta fugir de uma fazenda na Geórgia na companhia do íntegro Caesar (o cativante inglês Aaron Pierre, integrante do elenco do novo filme de M. Night Shyamalan). No encalço dos dois, partirá o caçador Arnold Ridgeway (o australiano Joel Edgerton, sempre interessante), tendo ao lado um surpreendente ajudante: Homer (Chase W. Dillon), um menino negro. Outra companhia frequente dos personagens é a maravilhosa trilha sonora composta por Nicholas Britell, indicado ao Oscar por Moonlight e por Se a Rua Beale Falasse. Interpretado por uma orquestra de cordas, um dos temas traduz os sentimentos contraditórios de Cora: há dor e aflição por um lado, resiliência e esperança por outro.
A Underground Railroad do título era o nome dado a uma rede secreta de rotas e esconderijos utilizada por negros que buscavam escapar da escravidão — entre eles, estava a ativista Harriet Tubman (1822-1913), retratada no filme Harriet (2019). Não tinha trens nem era subterrânea, mas é assim que se apresenta no livro de Whitehead, hoje com 51 anos, e na minissérie dirigida por Jenkins, 41 (o quinhão de realismo mágico permite anacronismos como um arranha-céu no Estado da Carolina do Sul). É como se a ferrovia nos lembrasse de que há toda uma história correndo por baixo dos documentos oficiais, há toda uma população que teve sua voz calada pela mão bruta do racismo.
Calada ou deturpada. No segundo episódio, um homem branco conduz crianças brancas por um Museu das Maravilhas Naturais, na Carolina do Sul. Ali, a principal atração é a "jornada de transformação" dos africanos trazidos à força de seu continente: de "selvagens que usavam crânios como copos" passaram a "civilizados que bebem xícaras de chá". Por conta disso, os oprimidos estariam gratos.
Diante do contexto de The Underground Railroad, a violência não haveria de ser apenas cultural. Logo nos primeiros minutos do capítulo de abertura, por exemplo, há uma cena panorâmica em que dois homens, um bem à esquerda da tela e outro bem à direita, chicoteiam uma mulher ao centro, aos olhos dos demais escravos. Afora os grilos da noite, os únicos sons que escutamos são o estalo do açoite e os gemidos da personagem.
O efeito é devastador e pode despertar o receio de uma jornada semelhante ao de outra série sobre racismo lançada em 2021 pelo Amazon Prime Video, Them. Nesse terror ambientado na década de 1950 sobre uma família negra que se muda da Carolina do Norte, onde ainda vigoravam leis segregacionistas, para a Califórnia, a exposição da crueldade parece ter virado exercício de sadismo. Mas Barry Jenkins é um diretor extremamente sensível, como se pôde ver nos seus longas-metragens (Moonlight está disponível em Netflix, Apple TV, Google Play e YouTube, e Se a Rua Beale Falasse, em Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e YouTube). Em entrevistas, ele contou que havia um terapeuta no set para atender aos atores e admitiu que "uma dificuldade era balancear a violência":
— Ela tinha de servir à história, e não atacar o público. Decidi que as cenas seriam poucas, mas reais. Era minha responsabilidade mostrar a verdade.
São "as atrocidades que o homem é capaz de cometer quando acredita que sua causa é justa", como afirmará Martin (Damon Herriman, o Charles Manson da série Mindhunter e do filme Era Uma Vez em Hollywood), agente da estação na Carolina do Norte — Estado que, na ficção, decidiu abolir a escravidão eliminando os negros. É a efetivação do Destino Manifesto, a crença de que os homens brancos dos Estados Unidos eram escolhidos por Deus para "tomar o que é seu por direito", passando por cima de "peles-vermelhas" (os indígenas nativos), negros ou mexicanos, assim descrito pelo caçador de escravos Ridgeway:
— O único espírito que tem valor é o americano. Aquele que nos trouxe do velho mundo para o novo, para conquistar, construir e civilizar. E engrandecer a raça inferior. Se não engrandecer, subjugar. Se não subjugar, exterminar, eliminar. É nosso destino prescrito por Deus. A prerrogativa americana.
À força das palavras, Barry Jenkins acrescenta um trabalho extraordinário de composição visual, de poesia visual, em parceria com o diretor de fotografia James Laxton e da editora Joi McMillon, os mesmos de Moonlight (pelo qual ambos concorreram ao Oscar) e Se a Rua Beale Falasse. As cenas são — na falta de um adjetivo mais grandioso — lindas. Os movimentos de câmera, fluidos, geram enquadramentos inusuais — por outro lado, característicos da obra de Jenkins. Há travellings desconcertantes que flagram o elenco principal e os figurantes olhando diretamente para o espectador. Em um texto que acompanha um vídeo de bastidores, o cineasta justificou:
— Durante a produção, houve um momento em que olhei para os atores e percebi que estava olhando para meus ancestrais, um grupo de pessoas cujas imagens foram amplamente perdidas para o registro histórico. Pausamos o trabalho para retratá-los. Fizemos isso várias vezes nas filmagens. Com os pés nos lugares habitados pelos nossos antepassados, tivemos a sensação de vê-los, de vê-los verdadeiramente, e quisemos partilhar isso. Este é um ato de ver. De vê-los. E talvez, de uma forma tola, de abrir um portal onde eles possam nos ver, os benfeitores de seus esforços, das vidas que viveram.
Nesse sentido, as músicas escolhidas para os créditos de encerramento de cada episódio são personagens à parte. Jenkins optou por canções bem mais contemporâneas, como Hey U (1995), do Groove Theory, Runnin' (1995), do The Pharcyde, e This Is America (2018), de Childish Gambino. O recado é direto: o passado está conectado ao presente. A luta continua. Afinal, como escreve o advogado, filósofo e professor Silvio de Almeida na introdução da nova edição brasileira de As Almas do Povo Negro (Veneta, 2021), clássico do sociólogo e historiador W.E.B. Du Bois (1868-1963), "a sociedade estadunidense se reorganizou depois da Guerra Civil para reconstituir, sob novas bases, a subalternidade do povo negro. A violência da escravidão foi substituída pela violência do racismo".