Ia levar meu filho para ver o filme sobre Harriet Tubman, mas chovia e fazia frio, e me deu preguiça. Preferi ficar em casa lendo e jogando xadrez online – já estou com 1,7 mil pontos no ranking.
“Chovia e fazia frio.”
É lindo começar uma história assim. É clássico. Sempre quis iniciar um texto desse jeito, e agora perdi a oportunidade, abri contando que ia levar o Bernardo para assistir a Harriet. Triste. Mas um dia conseguirei.
Por nesta quarta-feira, que é Dia da Consciência Negra, preciso ressaltar que Harriet Tubman foi uma das personagens mais extraordinárias da história dos Estados Unidos. Ela tinha só metro e meio de altura, mas era determinada, cheia de personalidade e muito corajosa.
Harriet nasceu no século 19 em Maryland, no sul escravagista dos Estados Unidos. Seus pais eram escravos, e ela foi submetida a trabalhos forçados desde a primeira infância. Lembro daquela música do Edu Lobo, interpretada de forma radiante por Elis Regina: Upa, Neguinho:
“Upa, neguinho
Começando a andar
E já começa a apanhar…”.
Foi assim com Harriet. Era ainda bem pequena e apanhava com brutalidade se o feitor não se contentasse com o trabalho que havia feito. Um dia, quando tinha 12 anos de idade, estava em um armazém, buscando mantimentos para o patrão, quando um escravo saiu correndo. O guarda que o custodiava apanhou um peso de um quilo que estava sobre o balcão e jogou em direção ao fugitivo. Errou. Atingiu a cabeça de Harriet, que caiu desacordada e sangrando. Levada de volta para a senzala, a menina ficou dois dias deitada em um banco, sem qualquer tratamento. Mesmo assim, sobreviveu. Mas ficou com sequelas durante toda a vida. Às vezes, Harriet simplesmente apagava, caía em um sono profundo do qual ninguém conseguia despertá-la. Noutras, era acometida por visões. Religiosa, achava que as coisas estranhas que via eram manifestações de Deus.
Depois de peripécias incontáveis, Harriet acabou fugindo para a Filadélfia, onde a escravidão era proibida. Então, iniciou-se um tempo glorioso de sua vida. Porque ela não se contentou em permanecer quieta na segurança do Norte. Ao contrário, ia para o Sul, tirava escravos das plantações e os levava para os Estados onde poderiam viver em liberdade. Nessa tarefa, Harriet valia-se da chamada Ferrovia Subterrânea, um sistema criado por abolicionistas para permitir a fuga de escravos. Milhares de americanos participavam do esquema, oferecendo esconderijo, comida e transporte para os fugitivos. Harriet fez mais de 10 incursões ao Sul para resgatar seus irmãos negros. Uma de suas estratégias era levar uma galinha debaixo do braço. Se aparecesse algum policial ou feitor, Harriet soltava a galinha e saía correndo atrás dela, como se estivesse tentando recuperar a ave para seu proprietário. O policial, assim, não olhava diretamente para seu rosto e não a reconhecia. Harriet salvou tantas pessoas da escravidão, que é chamada de Moisés americana.
Na Guerra Civil, Harriet foi espiã da União e chegou a comandar pelotões em luta contra os sulistas. Foi uma mulher especial. Aqui, em Boston, há um belo monumento homenageando-a. Há uns quatro ou cinco anos, o governo federal anunciou que a imagem de Harriet estamparia as notas de US$ 20, substituindo a do presidente Andrew Jackson. Festejei essa decisão, porque nutro certa antipatia por esse Jackson – foi ele o responsável pela remoção dos índios de suas terras sagradas. Dezenas de milhares de índios foram forçados a marchar para o lado oeste do Mississippi num episódio triste chamado “Trilha de Lágrimas”. Mas contaria isso tudo, e também sobre Harriet Tubman, se tivesse visto o filme. Não vi ainda. Quando vir, contarei. E já sei como abrirei o texto. Assim:
“Chovia e fazia frio”.