Quando ganhou o Globo de Ouro por Estados Unidos vs Billie Holiday (2021), no último dia de fevereiro, a estreante Andra Day não apenas esquentou a briga pelo Oscar de melhor atriz — também aumentou o interesse pelo filme que entrou recentemente em cartaz no Amazon Prime Video.
Já havia bons chamarizes.
Depois de quase 40 anos, a célebre cantora e compositora de jazz e swing estadunidense, uma pioneira na manipulação do fraseado e do tempo dos versos, volta a merecer uma cinebiografia. A primeira, O Ocaso de uma Estrela (Lady Sing the Blues, 1972), concorreu a cinco Oscar, incluindo melhor atriz — a diva do soul e do pop Diana Ross, em um de seus raros papéis no cinema. Mas enquanto este último filme, como indica o título brasileiro, se concentrou na decadência de Billie, que tinha histórico de relacionamentos com homens abusivos e violentos e de problemas com drogas e álcool (morreu de cirrose com apenas 44 anos, em 1959), o novo procura abordar, também, a faceta de ativista na luta contra o racismo.
Estados Unidos vs Billie Holiday é um filme aparentado de outros dois lançados na temporada 2020/2021: Judas e o Messias Negro, ganhador dos Oscar de ator coadjuvante (Daniel Kaluuya) e canção original, além de ter concorrido à principal estatueta, e MLK/FBI, que ficou na lista dos 15 semifinalistas da categoria de melhor documentário. Os três focam em como a polícia federal estadunidense vigiava — ou perseguia — ícones do movimento negro no país.
O documentário é baseado em documentos recentemente trazidos à tona sobre as ações a respeito do pastor Martin Luther King Jr., pacifista assassinado em 1968. Judas e o Messias Negro conta uma história de traição: no final dos anos 1960, William O'Neal (Lakeith Stanfield), um ladrão de carros, é coagido pelo FBI para se infiltrar nos Panteras Negras e se tornar um informante sobre o líder do partido em Chicago, Fred Hampton (Daniel Kaluuya), que viria a ser executado em 1969.
Uma situação semelhante ocorre em Estados Unidos vs Billie Holiday. Agente da polícia federal, Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes, de Moonlight) se aproxima da cantora para prendê-la. A alegação é posse de drogas, mas no filme, que se concentra nas décadas de 1940 e 1950, Billie vira alvo da Casa Branca por conta de seu ativismo pelos direitos civis da população afro-americana — querem impedir que ela cante Strange Fruit (1939), cujos versos denunciam e condenam os linchamentos de negros que ocorriam no sul do país (e que simbolizam as mortes extrajudiciais, inclusive aquelas perpetradas pelas forças policiais na atualidade).
Outro ponto de interesse é que Estados Unidos vs Billie Holiday marca o retorno de Lee Daniels à direção de um longa-metragem, depois de oito anos nos quais atuou mais como criador e produtor executivo das séries Empire (2015-2020) e Star (2016-2019), ambas sobre o universo musical. Estadunidense de 61 anos, Daniels foi o primeiro cineasta negro a assinar um concorrente ao Oscar de melhor filme — Preciosa (2009), que recebeu os troféus de atriz coadjuvante (Mo'Nique) e roteiro adaptado e disputou ainda as categorias de direção, atriz (Gabourey Sidibe) e edição. Seu trabalho mais recente fora O Mordomo da Casa Branca (2013), inspirado na vida de Eugene Allen (interpretado por Forest Whitaker), que serviu a presidentes dos Estados Unidos de 1952 a 1986. Apesar da recepção favorável junto aos críticos (72% no Rotten Tomatoes), não disputou Oscar nem Globo de Ouro.
O choque entre a ambição de um diretor que quer voltar à ribalta e a energia de uma cantora de 36 anos que ganha seu primeiro grande papel permite que Estados Unidos vs Billie Holiday possa se chamar Lee Daniels vs Andra Day.
A despeito de algumas passagens brilhantes, como a do sonho que transporta a protagonista para o cenário descrito em Strange Fruit, o filme é uma bagunça estilística. Em suas demoradas duas horas e 10 minutos, por vezes segue a cartilha mais básica das cinebiografias: ao ser entrevistada por um jornalista de fofoca, Reginald Lord Devine (Leslie Jordan, do seriado Will & Grace), já no fim da carreira, Billie rememora sua trajetória; e, nesses flashbacks, a direção não explora matizes da personagem — ora ela é a estrela que galvaniza a audiência quando está no palco, ora é a viciada que se afunda na heroína, no álcool e nos braços de homens manipuladores.
Sobre esse ponto, a crítica Roxana Hadadi, no site Polygon, queixou-se do roteiro escrito por Suzan-Lori Parks a partir do livro-reportagem Chasing the Scream (2015), que examina a história e o impacto da criminalização das drogas. Roxana diz que, para Suzan-Lori, "as habilidades de Billie Holiday como cantora talentosa, performer vibrante e improvisadora intuitiva ficam em segundo plano diante de seus muitos relacionamentos com homens horríveis". Ela acrescenta que, de acordo com o filme, isso era resultado de escolhas românticas pobres da artista, em vez de sua aquiescência forçada a um mundo governado por mãos masculinas.
Em outras oportunidades, Lee Daniels investe em, por exemplo, cenas em preto e branco e câmera lenta que constituem um elemento estranho. Ao redor de Billie Holiday, em uma performance de Andra Day que faz jus ao adjetivo visceral, o diretor pôs para gravitar personagens caricatos — como um manda-chuva do FBI, Harry Anslinger (Garrett Hedlund) — ou atores que parecem perdidos/apagados diante do dínamo Andra Day.
É como se Estados Unidos vs Billie Holiday fosse uma versão negra de Judy (2019), a muito convencional cinebiografia da atriz e cantora Judy Garland (1922-1969), que teve uma vida parecida em vários aspectos (a dependência química, as decepções amorosas, o fim melancólico) e cujo papel valeu a Renée Zellweger o Oscar de melhor atriz. São títulos que suscitam a pergunta: uma atuação boa pode salvar um filme ruim? Melhor ainda: uma boa atuação pode SE salvar de um filme ruim? Andra Day luta com todas sua fisicalidade, seu olhar coruscante e sua voz rascante, mas ela não tem força para conter o desmoronamento da obra em que habita.