Depois de O Legado de Júpiter, muita gente deve ter ficado com um pé atrás em relação a Sweet Tooth, nova série da Netflix baseada em uma história em quadrinhos. Mas há motivos de sobra para conferir a estreia dos oito episódios da primeira temporada, na próxima sexta-feira (4).
Publicada originalmente pela editora estadunidense DC entre 2009 e 2013 (com uma continuação, iniciada no final de 2020, em andamento), Sweet Tooth é a primeira obra do canadense Jeff Lemire adaptada para streaming, cinema ou TV. Trata-se de um dos autores contemporâneos — tem 45 anos — mais produtivos e mais queridos pelo público. Muitas de suas HQs já saíram no Brasil, como a própria Sweet Tooth (agora sendo relançada em edição de luxo pela Panini), Nada a Perder (editora Nemo), Condado de Essex (Mino) e O Ninguém (Pipoca & Nanquim), todas desenhadas com o belo traço "feio" de Lemire, perfeito para traduzir o fragilizado íntimo de seus personagens. Vale destacar também Black Hammer (Intrínseca), parceria com o artista Dean Ormston que foi laureada com o prêmio Eisner de melhor série nova em 2017.
Apesar de variar entre o drama familiar (tipo O Soldador Subaquático), as aventuras de super-herói (como em Cavaleiro da Lua), a ficção científica (Trillium) e o mistério policial/sobrenatural (Gideon Falls), Lemire costuma trabalhar com os mesmos temas. São marcas de seus quadrinhos a paternidade turva e seu duradouro impacto emocional sobre os filhos; a paisagem inóspita e o bucolismo opressor; o questionamento sobre o que é real e o que é ilusão, delírio ou paranoia; os personagens que empreendem uma arqueologia — concreta ou psicológica — para desvendar enigmas e, quem sabe, alcançar a redenção; os roteiros que conjugam uma estrutura engenhosa, cheia de idas e vindas no tempo, com um certo didatismo sentimental.
Sweet Tooth foi desenvolvida para a Netflix por Jim Mickle, diretor de um punhado de filmes de terror — Mulberry Street: Infecção em Nova York (2006), Stake Land: Anoitecer Violento (2010), Somos o que Somos (2013) e Julho Sangrento (2014) —, além da mistura de crime e sci-fi Sombra Lunar (2019), e Beth Schwartz, produtora e roteirista nos seriados de super-herói Arqueiro (Arrow) e Lendas do Amanhã. Entre os produtores, está o casal Robert Downey Jr. (o Homem de Ferro do universo cinematográfico Marvel) e Susan Downey.
Em entrevistas, Lemire disse que a série será "superfiel" à HQ, que já foi descrita como um encontro entre Bambi e Mad Max. A história se passa em um futuro pós-apocalíptico. Após um evento pandêmico denominado de Flagelo, que matou bilhões de pessoas, as únicas crianças nascidas são híbridas, mesclando características humanas e animais, e perseguidas. É o caso de Gus, menino órfão com fisionomia de cervo e que adora doces (daí o título original, Sweet Tooth, que pode ser traduzido como guloso).
Sob ameaça de caçadores, Gus encontra um guardião em Tommy Jepperd, um homem bruto e misterioso que promete levar o guri até a Reserva, refúgio para os híbridos. No meio do caminho, a trama apresentará ótimos coadjuvantes, como Wendy, uma garota com rosto de porco, e o Dr. Singh, um cientista que grava em fitas suas descobertas e suas inquietações — um personagem que não raro representa a nossa visão diante do Outro.
Entrementes, Jeff Lemire vai ele próprio fazendo um híbrido de aventura distópica, melodrama familiar, fábula sobre amadurecimento e embates da ciência versus o misticismo e do homem contra a natureza. E faz isso apostando na singularidade do seu desenho, nos jogos de simetria, nas justaposições, nos enquadramentos inesperados, nos detalhes que formam um todo e na conjugação de cenas puramente afetivas com sequências em que transparece seu trabalho de carpintaria cerebral (como nos roteiros d'As Fitas de Singh).
O elenco principal de Sweet Tooth traz Christian Convery (que viveu David menino na série Legião) no papel de Gus, Nonso Anozie (de Cinderela e do seriado Zoo) na pele de Jepperd, Naledi Murray como Wendy e Stefania LaVie Owen (a Rebecca Iguero de Messiah) como Becky. Adeel Akhtar (de Enola Holmes e O Refúgio) faz o Dr. Singh, e Aliza Vellani, sua esposa, Rani.