Assistimos em família a Enola Holmes – eis o primeiro ponto a destacar do filme que estreou na Netflix nesta quarta-feira (23). Fora as produções efetivamente infantis, são raros os lançamentos da plataforma que podem ser vistos na companhia das crianças. Claro, são os adultos que pagam as contas, então, dê-lhes as cenas de sexo de 365 dni, a aproximação de religião e violência de O Diabo de Cada Dia, o debate ético e político de Rede de Ódio... Mas adultos também podem ter filhos, e essa pandemia transformou nosso sofá em poltrona de cinema.
A Helena, 10 anos, e a Aurora, sete, não conheciam Sherlock Holmes, mas o trailer já havia as animado para ver as aventuras da irmã adolescente do célebre detetive criado por Arthur Conan Doyle (1859-1930), uma personagem surgida em 2006 pelas mãos da escritora Nancy Springer. O começo do filme dirigido por Harry Bradbeer, que assinou 11 episódios do seriado Fleabag, e roteirizado por Jack Thorne, autor da série The Eddy, galvanizou esse interesse: estamos em 1884, nos cenários, nos figurinos, nos costumes e na evocativa trilha sonora; mas estamos no século 21 no ritmo dramático (uma jornada de perigos e reviravoltas, com um animado paralelismo na montagem que lança mão de flashbacks), na roupagem (os recursos gráficos e as quebras da quarta parede, quando a protagonista fala diretamente com o espectador – como em Fleabag), nos temas e nos diálogos.
Daí o título desta coluna. Minhas filhas adoraram a investigadora juvenil interpretada por Millie Bobby Brown (a Eleven do seriado Stranger Things), mas não querem ser Enola Holmes porque não querem viver em uma sociedade na qual as meninas são criadas para serem belas, recatadas e do lar. Uma sociedade em que as mulheres não têm direito a voto – nem a veto: o que impera é a palavra dos homens. Uma sociedade em que a luta pela representatividade e pela igualdade precisa ser clandestina.
Minhas filhas tampouco queriam passar pelo que Enola sofre, a materialização do anagrama contido em seu nome – de trás para frente, é Alone, sozinha, em inglês. Órfã de pai, com quem mal chegou a conviver, a personagem vê-se de repente abandonada pela mãe, Eudoria (papel de Helena Bonham Carter), aquela que não a ensinou a bordar, mas a ler; que não ensinou a fazer colar de conchas, mas a fazer ciência; que não ensinou a ser uma dama, mas uma esportista, uma lutadora, uma guerreira.
— Mamãe dizia que éramos livres para fazer tudo em Ferndell (a cidadezinha onde os Holmes moravam) e ser quem quiséssemos — narra Enola na abertura, enquanto, em um empolgado jogo de tênis dentro de uma sala, Eudoria mutila o busto de um patriarca da família, muito menos um descuidado ato de vandalismo do que uma divertida mensagem feminista.
A condição solitária se mantém mesmo com a volta dos irmãos mais velhos, Sherlock (Henry Cavill) e Mycroft (Sam Claflin). O primeiro subestima a inteligência da caçula, o segundo quer que ela siga o destino de submissão feminina. Enola, como sua mãe também ensinou, terá de fazer seu próprio caminho numa trama que inclui um jovem lorde fujão e um vilão cruel, intrigas familiares e crítica social, sequências de ação e boas piadas. Movimentação não falta ao filme, mas a duração poderia ficar abaixo das duas horas (tem 123 minutos).
O que a Helena e a Aurora querem ser é Millie Bobby Brown, a atriz por trás de Enola Holmes. A começar porque, com apenas 16 anos, ela já tem cacife para ser uma das produtoras do filme. Millie faz uma falta danada quando sai de cena (ainda bem que isso é raro) e nos encanta desde o primeiro close em seu rosto, quando surge pedalando por uma verdejante paisagem inglesa e nos pergunta: "Por onde eu começo?". De cara, se desvincula da personagem mais sofrida, sisuda e restrita que encarna em Stranger Things. Sua Enola, para além da valentia e da perspicácia, transborda charme e bom humor – características realçadas pela quebra da quarta parede. É nessa conversa direta que a detetive adolescente inspira e empodera espectadoras – pelo menos as pequenas aqui de casa, que têm a sorte de estarem crescendo em um mundo onde, cada vez mais, filmes e séries levam o protagonismo feminino mesmo a territórios de domínio masculino, como as histórias de Sherlock Holmes.