O Legado de Júpiter, que estreia na Netflix nesta sexta-feira (7), tinha um desafio do tamanho da divindade mitológica citada no título: sobressair no saturado mundo dos super-heróis. É verdade que a pandemia de coronavírus deu férias forçadas nos cinemas — Viúva Negra, Venom 2 e Os Eternos, por exemplo, foram adiados de 2020 para 2021. Mas, no streaming, a todo instante surgem personagens encapuzados e/ou de uniformes colantes e/ou com capa às costas, munidos com algum superpoder muito comum (força extraordinária, voo, viajar no tempo, capacidade de soltar raios pelas mãos etc) ou algo exótico (como se comunicar com os mortos ou convencer os outros de que uma mentira é realidade) e geralmente trazidos das histórias em quadrinhos.
Basta ver o catálogo da própria Netflix: de julho do ano passado para cá, entraram em cartaz filmes como The Old Guard, Power, Origens Secretas, Freaks: Um de Nós e Esquadrão Trovão, além da temporada inicial da série Warrior Nun e da segunda de The Umbrella Academy. As plataformas concorrentes não ficam tanto atrás. O Legado de Júpiter (Jupiter's Legacy) chega na esteira dos dois primeiros seriados da Marvel no Disney+— WandaVision e Falcão e o Soldado Invernal— e da animação Invencível (todos lançados entre janeiro e março), que vai adaptar para o Amazon Prime Video os quase 150 gibis escritos por Robert Kirkman (o criador de The Walking Dead) e desenhados por Cory Walker e Ryan Ottley.
O parentesco de O Legado de Júpiter com pelo menos três séries recentes mostra-se uma faca de dois gumes. Por um lado, pode atrair espectadores interessados em uma visão dos super-heróis como estrelas midiáticas inseridas em um contexto político-econômico (tipo The Boys), ligadas a eventos históricos que fazem a trama ser alternada entre passado e presente (à lá Watchmen) e que encenam os clássicos conflitos familiares e choques de geração (a exemplo de The Umbrella Academy). Por outro, pode enfastiá-los — ainda mais que, em tudo, a qualidade é inferior às três obras citadas.
Esta é a primeira série da Netflix baseada no chamado Millarworld, os quadrinhos do roteirista escocês Mark Millar, cujos trabalhos inspiraram filmes como O Procurado (2008), Kick-Ass: Quebrando Tudo (2010), Kingsman: Serviço Secreto (2014), Capitão América: Guerra Civil (2016) e Logan (2017). O autor define O Legado de Júpiter como uma mistura entre os super-heróis da Era de Ouro (1938-1956, quando nasceram Superman, Batman, Mulher-Maravilha etc), Star Wars, King Kong, mitologia greco-romana, Hamlet e as óperas de Wagner. Uma pergunta norteia o gibi (esplendidamente ilustrado pelo também escocês Frank Quitely, com cores de Pete Doherty, e publicado no Brasil em dois volumes pela editora Panini) e os episódios: como é ser filho de um super-homem?
No seriado, essa questão é respondida em dois níveis, os dois tempos narrativos. Nos Estados Unidos da virada dos anos 1920 para a década de 1930, o herdeiro bon-vivant Sheldon Sampson (papel de Josh Duhamel) e seu irmão mais velho, o maquiavélico Walter (Ben Daniels, da série O Exorcista), vivem à sombra do suicídio do pai, um dos grandes empresários seriamente afetados pela quebra da Bolsa de Valores de Wall Street, em 1929.
No presente, Sheldon é o super-herói Utópico, um idealista como o nome sugere, e Walter, o Onda-Cerebral, capaz de separar a mente do corpo de seus adversários — seus poderes e os de outros quatro personagens (todos integrantes do supergrupo União) foram adquiridos nos anos 1930, em uma ilha misteriosa como aquela habitada pelo gigante gorila King Kong, que deu as caras ao mundo em 1933, no filme homônimo dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Casado com Grace Kennedy, a Lady Liberdade (Leslie Bibb), o Utópico tem dois filhos jovens: Chloe (Elena Kampouris), que só quer farrear na vida e ficar longe da família, e Brandon (Andrew Horton), que só quer provar que é um super-herói à altura do pai. Ambos interagem com a prole dos demais superseres, fazendo lembrar de mais uma série do gênero, Fugitivos (no original, Runaways).
Os valores morais da patota serão postos em xeque durante um ataque do brutamontes Estrela Negra, que escapou de uma prisão especial: super-heróis podem matar? Não é o respeito a um estrito código de conduta o que os separa dos vilões? Mas como jogar pelas regras se o mundo está convulsionado nos âmbitos político, econômico e social?
Esse dilema vai opor o Utópico a quase todos os demais colegas de ofício, e essa cisão remete àquela de outra obra de Mark Millar, Guerra Civil — quando a ação de um supergrupo de jovens termina em tragédia, o governo dos Estados Unidos aprova uma lei obrigando todos os mascarados a revelarem suas identidades secretas e a trabalhar oficialmente para o Estado. O Homem de Ferro é um dos entusiastas do projeto governamental. O Capitão América é um crítico ferrenho.
A sensação de déjà vu vai cutucar bastante o espectador de O Legado de Júpiter. Isso quando não der lugar ao simples tédio. Nem as cenas de ação ou os efeitos especiais têm o poder de prender a atenção. Confesso que, diante dessa combinação explosiva, só tive ânimo e paciência para ver três episódios e meio dos oito da primeira temporada (tenho mais com o que gastar meu tempo). É de se pensar se haverá uma segunda.
Na verdade, a série já começou com passo em falso: seu showrunner — basicamente, o manda-chuva —, Steven S. DeKnight (o mesmo do ano inicial de Demolidor, também da Netflix), que escreveu e dirigiu o capítulo de abertura, deixou a produção por "divergências criativas". Pode ser que ele tenha se arrependido pelos diálogos escritos sem a mínima sutileza e com um didatismo irritante, que não deixa margem para as ironias de The Boys. Ou pelo enredo enfadonho que jamais arranha a gravidade política alcançada por Watchmen. Pode ser, também, que DeKnight tenha percebido que, com exceção de Ben Daniels, o elenco escalado não consegue emprestar aos núcleos familiares o carisma dos personagens de The Umbrella Academy. Pelo visto — repito, em três episódios e meio —, O Legado de Júpiter não deixará um legado divino.