Há um saudável anacronismo na segunda temporada de The Boys, que estreou na última sexta-feira (4) no Amazon Prime Video. Em vez de liberar todos os episódios de uma vez só, como ocorre com a maioria das séries, a plataforma colocou no ar apenas três – os outros cinco serão lançados um por semana.
Essa estratégia frustrou alguns fãs, aqueles que curtem maratonar seriados. Mas tende a se mostrar duplamente benéfica – tanto para a obra quanto para o público.
Por um lado, dá mais tempo de vida para a série. Cada episódio vira um acontecimento, gera repercussão. Ao contrário do que acontece com as atrações despejadas por inteiro – alguém aí lembra de Warrior Nun, por exemplo? Ou de Cursed: A Lenda do Lago?
Por outro, tira dos ombros do espectador a pressão para assistir a tudo atabalhoadamente, sem pausa para refletir, combatendo o sono para não perder o trem do "hype" – o estrangeirismo que se adotou para substituir "dando o que falar" – e não ficar tão exposto a spoilers nas redes sociais.
O bom é que o conteúdo não reflete, pelo menos não totalmente, a moda antiga empregada na distribuição. The Boys é uma série sobre super-heróis em que os súpers não são, necessariamente, heróis. Como Watchmen, mas sem a profundidade nem a sofisticação narrativa da minissérie da HBO baseada nos quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons, a adaptação do Amazon Prime Video para os gibis escritos por Garth Ennis e desenhados por Darick Robertson exerce uma visão crítica do gênero. Enquanto Watchmen discute o super-herói como um agente nascido do supremacismo branco e a máscara como uma senha para o fascismo e a violência, The Boys mostra esse tipo de personagem a serviço do militarismo americano (não é à toa que usam uniformes) e dos conglomerados empresariais. São um produto, uma franquia, como a do universo cinematográfico da Marvel. São também uma metáfora ácida de Hollywood, um lugar onde as pessoas podem corromper ou serem corrompidas em nome da fama e do dinheiro.
A primeira temporada de The Boys estabeleceu o conflito. De um lado, temos Os Sete, uma versão nada exemplar da Liga da Justiça, o supergrupo da DC. Homelander, o Capitão Pátria (Antony Starr, em uma interpretação fascinante), tem superpoderes como o do Superman, mas é um vilão disfarçado de herói: oscila entre o cinismo, a fúria e a dissimulação. Rainha Maeve (Dominique McElligott) é uma Mulher Maravilha desencantada. Trem Bala (Jessie Usher), veloz como o Flash, mas sofre de dependência química. The Deep, o Profundo (Chace Crawford), uma espécie de Aquaman, é um abusador sexual. Black Noir (Nathan Mitchell) faz às vezes de um Batman mais violento e completamente calado. A mais nova integrante é Starlight, a Luz-Estrela (Erin Moriarty), uma garota interiorana, empresta seus olhos inocentes para o público ver, por dentro, os podres d'Os Sete.
É outro jovem simples e simpático, Hughie (Jack Quaid), quem nos guia no lado dos mocinhos, por assim dizer. Sob o comando de Billy Bruto (Karl Urban) e com a presença ainda de Leitinho (Laz Alonso), Francês (Tomer Kapon) e Kimiko (Karen Fukuhara), The Boys é o grupo que tenta desmascarar os super-heróis. O objetivo é expor que eles são, na realidade, um bando de viciados em uma droga chamada Composto V (que lhes dá os poderes especiais) a serviço de uma empresa gananciosa e inescrupulosa, a Vought.
Os três primeiros episódios da segunda temporada concentraram-se nos desdobramentos do final da primeira (ATENÇÃO: pode haver SPOILERS para quem não os assistiu). Bruto e companhia estão foragidos, mas, graças à aliança romântica entre Hughie e Starlight, também estão próximos de revelar o segredo dos supers: eles não são escolhidos de Deus, como, aliás, pensam racistas, supremacistas e os americanos em geral. Enquanto isso, o Capitão Pátria busca estender suas garras em duas frentes. Na profissional, corrige o marketing em torno d'Os Sete: o slogan deles não deve ser "Salvando o mundo", mas "Salvando a América" – algo mais alinhado aos tempos de Donald Trump na Casa Branca, né? Na vida doméstica, ele quer estreitar laços com o filho que descobriu ter – o que significa criar um pequeno monstro, à base de beisebol, torta de maçã, agressividade e outras tradições dos Estados Unidos.
Mas o Capitão Pátria agora tem antagonistas no próprio ninho. Stan Edgar (papel de Giancarlo Esposito, o Gus Fring de Breaking Bad e Better Call Saul), o chefão da Vought, dá a real: o negócio da empresa não são os super-heróis, mas vender farmacêuticos. Quem manda é o dinheiro, ora. Mas, se for para lucrar – financeira ou mesmo politicamente –, pode-se forjar supervilões, superterroristas e toda sorte de inimigos.
O aparecimento da segunda oponente interna justifica a diluição dos episódios ao longo das próximas semanas: o espectador, principalmente aquele não familiarizado com os quadrinhos The Boys (a propósito: o décimo dos 12 volumes acaba de ser lançado no Brasil pela editora Devir), precisa de tempo para pensar a respeito de Stormfront, a Tempesta (interpretada por Aya Cash). Ela surge em cena como uma nova e petulante heroína d'Os Sete, contratada diretamente por Edgar, sem passar pelo crivo do Capitão Pátria. Em um primeiro momento, pode ser encarada como alguém que, imbuída pelo poder das redes sociais, vai questionar, por dentro, os papéis relegados às mulheres nas histórias de super-herói. Uma postura feminista, digamos.
Acontece que Stormfront é o nome do principal fórum na internet para neonazistas e supremacistas brancos. Nos gibis, Stormfront era um personagem masculino, fruto de um experimento dos cientistas de Adolf Hitler.
Ou seja: Eric Kripke, o desenvolvedor do seriado, pegou um personagem masculino e transformou em feminino; pegou um personagem nazista e associou Stormfront a um discurso contra o machismo. A coisa se torna explosiva quando, no terceiro episódio, a nova integrante revela-se uma assassina racista e sádica.
Precisamos mesmo de uns dias de intervalo até o quarto episódio, na sexta-feira (11), para refletir. Por que alguém que ataca a misoginia do mundo super-heroico acaba sendo uma vilã – enquanto somos induzidos, ainda que sob o manto da sátira, a sentir um pouco de pena de The Deep, o abusador sexual, lá na cidadezinha para onde ele foi banido? Por que Kimiko, a única mulher entre os comandados de Billy Bruto, não fala (sua principal forma de expressão é a violência física, como se apenas seu corpo interessasse)? Por que personagens femininas com status de poder têm a cabeça – por extensão, o cérebro, a inteligência –incinerada (Madeline Stillwell, a vice-presidente da Vought) ou desintegrada (Susan Raynor, a diretora da CIA vivida por Jennifer Esposito)?
Que Luz-Estrela ilumine o caminho e que a Rainha Maeve empreste mais nobreza às "meninas" de The Boys. Esse anacronismo em relação à representatividade não é saudável.