Cursed: A Lenda do Lago, que estreou na sexta-feira (17) na Netflix, é o novo capítulo de uma longa tradição: a dos filmes e seriados sobre o mito do Rei Arthur.
A história do personagem começa no século 5, no território onde hoje fica a Inglaterra. A lenda sobre um guerreiro que combateu as invasões saxônicas e conquistou boa parte da Europa ganhou força na Idade Média, quando os relatos, até então orais, passaram a ser escritos.
Por um lado, Arthur simboliza a esperança, o desejo de um mundo melhor. Ele próprio encarna a ideia de um homem melhor, o único capaz, por nobreza ou por escolha de Deus, de erguer a espada Excalibur.
Por outro lado, o reino que ele estabeleceu em Camelot também serve de cenário para histórias sobre intrigas, cobiça, traição, arrogância e outras coisas nada edificantes.
Os filmes e as séries exploraram essas vertentes, indo do épico à paródia, da aventura de capa e espada ao drama com foco no triângulo amoroso entre Arthur, a rainha Guinevere e o cavaleiro Lancelot.
A assiduidade é digna de nota: desde os anos 1930, pelo menos uma vez a cada década o mito foi levado ao cinema, à TV ou ao streaming. É como um espelho da própria lenda, que profetiza: um dia, ele voltará.
Nos anos 1930, Um Yankee na Corte do Rei Arthur (1931) adaptou um romance do escritor Mark Twain, de 1889, sobre um americano que acidentalmente viaja ao passado e vai parar em Camelot. O papel principal foi vivido por Will Rogers, um astro do vaudeville e dos primeiros anos de Hollywood, morto pouco tempo depois, em 1935, aos 55 anos, em um acidente de avião.
Nos anos 1940, George Reeves – que depois interpretaria o Superman – protagonizou o seriado cinematográfico Adventures of Sir Galahad (no Brasil, Os Cavaleiros do Rei Arthur). Foram 15 capítulos, a partir de 22 de dezembro de 1949, centrados no jovem Galahad, que tenta seguir os passos do seu pai, Sir Lancelot, e ganhar um lugar à Távola Redonda.
Nos anos 1950, em Os Cavaleiros da Távola Redonda (1953), Lancelot, interpretado por Robert Taylor, luta ao lado de Artur mas ama, secretamente, a rainha Guinevere, papel de Ava Gardner, uma das grandes estrelas de Hollywood.
Nos anos 1960, a Disney lançou o desenho animado A Espada Era a Lei (1963), que é sobre a infância do futuro rei. Foi dirigido por Wolfgang Reitherman, o mesmo dos clássicos 101 Dálmatas, A Bela Adormecida, Mogli e Aristogatas.
Nos anos 1970, o lendário grupo de humor inglês Monty Python fez a sátira Em Busca do Cálice Sagrado (1975). Tem cenas antológicas, como o duelo em que o Cavaleiro Negro perde os dois braços e as duas pernas mas segue desafiando Arthur.
No anos 1980, John Boorman dirigiu Excalibur (1981), um dos meus filmes preferidos. É bastante focado nos aspectos místicos da lenda. O mago Merlin, vivido com prazer por Nicol Williamson, é quase mais protagonista do que Arthur, e a bruxa Morgana, encarnada por Helen Mirren, tem papel de destaque.
Nos anos 1990, Sean Connery, Richard Gere e Julia Ormond viveram o célebre e trágico triângulo amoroso da corte de Camelot em Lancelot – O Primeiro Cavaleiro (1995).
Nos anos 2000, um telefilme, exibido como minissérie, adaptou os livros da tetralogia As Brumas de Avalon, um best-seller da escritora Marion Zimmer Bradley. É uma visão de Artur pela ótica feminina. No elenco, Julianna Margulies, indicada ao Globo de Ouro, Anjelica Huston e Joan Allen, que concorreram ao Emmy, assim como a própria minissérie.
Nos anos 2010, o diretor Guy Ritchie, depois de dar sua pegada pop e aventureira a Sherlock Holmes, resolveu fazer o mesmo com a lenda arturiana. Mas a mistura de pancadaria, estética de game e monstros de CGI de Rei Arthur: A Lenda da Espada (2017), que é estrelado por Charlie Hunnam, do seriado Sons of Anarchy, foi um fracasso de público – e de crítica. Morreu na casca a ideia de um universo cinematográfico com os demais Cavaleiros da Távola Redonda.
Agora em 2020, surge Cursed: A Lenda do Lago, baseada em um romance escritor por Tom Wheeler e ilustrado por Frank Miller, um mestre dos quadrinhos dos anos 1980 e 1990. Estrelada por Katherine Langford, a Hannah Baker da série 13 Reasons Why, a série é uma reimaginação da lenda, contada pelos olhos de Nimue, uma jovem com um dom misterioso destinada a se tornar a Dama do Lago – a sacerdotisa que deu a Arthur a espada Excalibur.
Vale a pena assistir? Só se você tem muito tempo e muita paciência. Atraente nos figurinos, nos cenários e na direção de fotografia (tudo com uma estética que remete a Game of Thrones e à recente The Witcher, também da Netflix), a série se arrasta ao longo de 10 episódios – eu aguentei até o quinto.
Sim, é bacana tentar rejuvenescer a lenda ao mesmo tempo em que a diversifica: além do protagonismo feminino, temos um Arthur que é negro, encarnado por Devon Terrell (que, em 2016, fez o jovem Barack Obama no biográfico Barry, disponível na Netflix). Também é legal acrescer à lenda original toques sobre intolerância religiosa/racial/política – o povo de Nimue, os feéricos, é caçado e queimado pelos chamados Paladinos Vermelhos – e sobre defesa do ambiente (os poderes da heroína são derivados de uma conexão com a natureza).
Mas Cursed, pelo menos até onde eu vi, mata de inanição quem espera boas atuações e ação empolgante.
As migalhas de ação – repito que parei no quinto capítulo – envolvem lobos e ursos nitidamente gerados em computação gráfica, uma ou outra correria e uns duelos de espada sem criatividade nem energia. Entre os atores, o sempre intenso Peter Mullan rende alguns diálogos carregados de maldade na pele do Padre Carden, um dos líderes dos Paladinos Vermelhos, e Gustav Skarsgård – filho de Stellan e irmão de Alexander e Bill, todos atores – se esforça no papel de um Merlin meio bêbado, meio malandro. O resto deixa a desejar ou até compromete – caso de Daniel Sharman, que faz o Monge Cinzento (ou Monge Choroso), um assassino aparentemente egresso de uma banda emo estereotipada, e dos diversos coadjuvantes que estão sempre de cara enfezada. Parecem um espelho da minha cara ao assistir a Cursed, com a diferença de que estão mais despertos.
Bônus: um gibi e um disco
Depois dessa viagem do Rei Arthur através dos tempos, que tal levar a lenda para o futuro? É o que faz a história em quadrinhos Camelot 3000, um clássico em que os invasores não são saxões, mas alienígenas. Só um herói como Arthur pode salvar a Terra. Mas a que preço?
Escrita por Mike W. Barr, desenhada por Brian Bolland e colorizada por Tatjana Wood, Camelot 3000 é uma história sobre o poder das lendas, sobre a inexorabilidade do desejo e do destino, sobre honra e coragem. De quebra, e à frente de seu tempo (foi produzida entre 1982 e 1985), oferece a tocante trama paralela de Sir Tristão, um homem reencarnado no corpo de uma mulher, mas eternamente apaixonado por sua Isolda – de forma pioneira no universo dos bigis de super-herói (a HQ é da DC Comics), o roteiro discutiu identidade de gênero e sexualidade.
Por fim, eis a trilha sonora que embalou a redação desta coluna: The Myths and Legends of King Arthur and the Knights of the Round Table (1975), disco de Rick Wakeman, ex-tecladista da banda Yes. Cheio de momentos épicos e psicodélicos, com fotos, ilustrações e um encarte que marcaram minha infância, o álbum transforma o mito em um inebriante (ou irritante, depende do seu gosto) concerto de rock progressivo. Suas melodias ficaram para sempre impregnadas na minha memória: são imortais, tal qual a lenda que as inspiraram.