O cacife atingido com a trilogia O Senhor dos Anéis (2001 a 2003) – quase US$ 3 bilhões nos cinemas e 17 Oscar conquistados, incluindo melhor filme e diretor com O Retorno do Rei – permitiu a Peter Jackson cometer uma extravagância no seu trabalho seguinte. Em King Kong (2005), que a RBS TV exibe neste domingo, às 15h35min, dentro da faixa Campeões de Bilheteria, o cineasta neozelandês gastou US$ 205 milhões – uma fortuna mesmo para os padrões de hoje.
Feitas as contabilidades – a financeira e a afetiva –, pode-se dizer que o dinheiro foi bem empregado. King Kong arrecadou US$ 562,3 milhões, ganhou três Oscar (efeitos visuais, edição de som e mixagem de som) e resgatou o gigantesco gorila do passado mecânico e maquiado de Hollywood para as superproduções digitais do século 21.
O personagem voltaria a aparecer em Kong: A Ilha da Caveira (2017), de Jordan Vogt-Roberts, que fez US$ 566,7 milhões nas bilheterias e, curiosamente, trazia no elenco a Capitã Marvel (Brie Larson), o Loki (Tom Hiddleston) e o Nick Fury (Samuel L. Jackson) da franquia Marvel. E será visto novamente em Godzilla vs. Kong, de Adam Wingard (o mesmo de O Hóspede, que já comentei aqui), com estreia marcada para maio de 2021 e estrelado por Millie Bobby Brown (a 11 de Stranger Things), Alexander Skarsgård (o Tarzan de 2016), Rebecca Hall (de Vicky Cristina Barcelona), Eiza Gonzalez (a Darling de Em Ritmo de Fuga) e Kyle Chandler (dos seriados Friday Night Lights e Bloodline).
As primeiras cenas do King Kong de Peter Jackson trazem animais em um zoológico e gente na cidade – catando comida no lixo, fazendo micagens para ganhar trocados. O som é o da canção I'm Sitting on the Top of the World (1925), na voz de Al Jolson.
Rapidinho, o cineasta situa o tempo do filme (os Estados Unidos da grande recessão dos anos 1930) e estabelece que, ali, os selvagens serão os homens. E a trilha não está só sendo irônica, como também já remete a um dos clímax mais famosos do cinema, aquele em que o gorila gigante, literalmente, senta no topo do mundo.
Essa abertura é um dos grandes acertos do diretor neozelandês na refilmagem do clássico de 1933. O primeiro, aliás, foi esquecer a ideia de uma versão contemporânea, como a que John Guillermin fez em 1976, com Jeff Bridges e Jessica Lange, e voltar à época do original, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, quando a imaginação popular ainda acreditava em monstros.
Jackson comete um único pecado, o do exagero. Não negando seu passado de filmes trash (como Fome Animal, de 1992), ele estende as cenas de ação para além do limite da verossimilhança – e isso em uma trama que inclui dinossauros e aranhas gigantes. É o caso, por exemplo, da fuga à la corrida de Pamplona do estouro de uma manada de brontossauros, uma overdose de efeitos digitais.
Mas o mesmo diretor obcecado por novas tecnologias e criaturas fantásticas é capaz de extrema sensibilidade (vide Almas Gêmeas, de 1994).
Mais do que o humor cínico e quase mórbido do produtor de cinema vivido por Jack Black, o sacana Carl Denham (com o físico e o caráter obsessivo do cineasta e ator Orson Welles), mais do que o bem engendrado clima de suspense e o antológico combate da fera, com sua bela nas mãos, contra tiranossauros, o que sobressai em King Kong é a delicadeza desse desproporcional romance (a propósito, o filme não ressalta a conotação sexual de algumas passagens, diferentemente do remake de 1976, em que a personagem de Jessica Lange tinha um orgasmo ao ser soprada pelo gorila).
A relação entre Kong e atriz Ann (Naomi Watts) é ainda mais extraordinária porque seus intérpretes nunca chegaram a realmente contracenar – o gorila tem os movimentos e as expressões de Andy Serkis, mas foi criado em computador. Peter Jackson fez de seu monstro menos um predador do que um solitário que, enfim, encontrou alguém a quem dedicar seu coração gigantesco.