Aos 34 anos, Michael B. Jordan já se tornou tão poderoso em Hollywood que é capaz de mudar a cor de um herói. Quantas vezes quiser, como comprova Sem Remorso (Without Remorse, 2021), thriller de ação e espionagem em cartaz desde sexta-feira (30) no Amazon Prime Video.
Cotado para ser o primeiro Superman negro do cinema, Jordan já havia encarnado versões negras do Tocha Humana, na aventura de super-heróis da Marvel Quarteto Fantástico (2015), e de Guy Montag, o bombeiro leitor de Fahrenheit 451 (2018), uma recente adaptação do romance distópico de Ray Bradbury.
A origem de Sem Remorso é novamente literária, um livro homônimo lançado em 1993 pelo escritor norte-americano Tom Clancy. Ambientada na época da Guerra do Vietnã, a obra contava a origem de um personagem recorrente no universo do agente Jack Ryan — visto em filmes como A Caçada ao Outubro Vermelho (1990), Jogos Patrióticos (1992) e Jack Ryan: Operação Sombra (2014), além do seriado Jack Ryan, surgido em 2018. Trata-se de John Kelly (também conhecido como John Clark), que, no cinema, foi interpretado por dois atores brancos: Willem Dafoe em Perigo Real e Imediato (1994) e Liev Schreiber em A Soma de Todos os Medos (2002).
Apesar dessa mudança étnica, Sem Remorso não faz disso um cavalo de batalha. Ser negro não transformou John Kelly em um símbolo da luta contra o racismo. Jordan justificou em entrevistas. Para a Associated Press, por exemplo, afirmou:
— Gosto de todos os tipos de filmes, de thrillers de ação a obras com propósito. Tenho sido abençoado por ter uma balança saudável entre o entretenimento e o ativismo. É assim a vida, né? Tentar achar um equilíbrio. Há momentos na vida em que você tem de fazer algo por si próprio, para sua alma, e outros em que você tem de fazer coisas que alimentem sua comunidade.
De fato, o astro equilibra sua carreira entre o ativismo e o entretenimento. Na primeira ponta, está o trabalho à frente da iniciativa #ChangeHollywood, para promover a inclusão racial na indústria audiovisual, e títulos como Fruitvale Station: A Última Parada (2013), sobre um jovem morto pela polícia em uma estação de trem de Oakland, na Califórnia, e Luta por Justiça (2019), em que interpretou Bryan Stevenson, advogado norte-americano que brigou para libertar um homem negro, Walter McMillian, injustamente condenado à morte. Na outra, podemos encaixar a ficção científica Kin (2018), com pegada de anos 1980, e a franquia de boxe iniciada por Creed: Nascido para Lutar (2015), que arrecadou US$ 174 milhões no primeiro segmento (quase cinco vezes o seu custo), US$ 214 milhões no segundo e já tem um terceiro a caminho — será a estreia de Jordan como diretor, em 2022.
Não raro as personas se misturam. Vide Pantera Negra (2018), a primeira aventura de super-herói indicada ao Oscar de melhor filme: boa parte da repercussão deve-se ao personagem vivido com gana e carisma por Jordan, Killmonger, um vilão cujo discurso sobre a herança nefasta do colonialismo na África e sobre a escravidão foi capaz de sensibilizar o mocinho da trama.
A opção de não abordar as tensões raciais em Sem Remorso — que inclui outra personagem negra em posição de destaque, a comandante Karen Greer (a britânica Jodie Turner-Smith, de Queen & Slim) — não deixa de ser política: convida para a naturalização de atores e atrizes negros em papéis historicamente reservados para brancos.
Fora esse contexto, porém, Sem Remorso tem pouco a oferecer. Tudo é bastante genérico, da trama às cenas de ação — a mais empolgante delas, em uma penitenciária, por um lado alude à forma com a qual Jordan planeja cuidadosamente os passos de sua carreira; por outro, remeteu a uma sequência semelhante no filme cult Bronson (2008), dirigido por Nicolas Winding Refn e protagonizado por Tom Hardy, sobre aquele que é considerado o mais violento prisioneiro do Reino Unido.
Sob direção do italiano Stefano Sollima (das séries Suburra e Gomorra e do filme Sicário: Dia do Soldado), a trama de Sem Remorso foi atualizada para os dias de hoje, embora ainda invista na dinâmica da Guerra Fria. John Kelly é um fuzileiro naval norte-americano que, após uma missão realizada durante o conflito militar na Síria, acaba se tornando alvo de retaliação dos russos em pleno solo dos Estados Unidos. A tragédia de que vira testemunha desperta uma fúria vingativa que despreza o conceito de diplomacia e que respingará no dúbio agente da CIA interpretado por Jamie Bell (em uma escalação também dúbia: o bom ator inglês não parece se encaixar no personagem).
Para o espectador acostumado a filmes do tipo, não haverá surpresas (nem mesmo na derradeira revelação, antevista a quilômetros de distância). Estão lá os escritórios governamentais que podem estar escondendo segredos e as organizações paramilitares que podem fazer eclodir uma Terceira Guerra Mundial. Os diálogos repetem uma cantilena sobre os imperativos econômicos por trás dos conflitos bélicos (ouvida, por exemplo, em outro lançamento de 2021, Zona de Combate, na Netflix) e investem em uma surrada metáfora, a do xadrez, para se referir ao jogo político. O que se salva é o carisma de Michael B. Jordan. Na pele de um personagem dividido entre as motivações pessoais e o patriotismo, ele fica solto para ir do registro dramático ao catártico, passando por um insuspeitado momento de humor e por inevitáveis explosões de violência. Mas Sem Remorso está longe de ser seu melhor trabalho, embora talvez se torne seu mais longo trabalho — a cena inserida no meio dos créditos finais promete uma franquia com uma equipe antiterrorismo multinacional.