Nestes tempos de Halloween Kills: O Terror Continua (2021) — em cartaz desde quinta-feira (14) nos cinemas brasileiros —, vale lembrar do filme original de 1978 (que é muito mais perturbador) e, principalmente, de seu diretor, John Carpenter. Um atalho é o que oferece O Hóspede (2014), thriller assinado por Adam Wingard que presta tributo ao cineasta estadunidense de 73 anos e que está disponível no Globoplay.
É um filme de vilão, convém avisar. Praticamente um prazer culpado: sabemos que o sujeito em questão é malvado, sabemos que a trama não vai nutrir o intelecto ou a alma, mas existe alguma coisa nele e nela que hipnotiza o olhar, que desarma a moral e que, ora, diverte pra caramba — ainda que de um jeito sinistro e sangrento.
O cartaz de O Hóspede, também vale dizer, não dá pistas disso. É um retrato em close do ator inglês Dan Stevens (o Matthew Crawley de Downton Abbey, o par de Emma Watson no remake de A Bela e a Fera e o protagonista do seriado Legion), iluminado como se fosse um astro da música pop, e não o estranho que diz ser amigo de um soldado morto em combate referido na sinopse. A família do militar Caleb, que perdeu a vida no Iraque, acolhe David, o personagem interpretado por Stevens, que exala um carisma digno mesmo de um astro da música pop.
Não demora para que a gente perceba que há uma máscara sorridente escondendo o verdadeiro David. Mas pai, mãe e os irmãos de Caleb estão inebriados — Luke (Brendan Meyer, o Jesse da série The OA), o caçula, finalmente tem alguém para o proteger do bullying diário na escola; Anna (Maika Monroe), finalmente tem um corpo sarado para desviar sua atenção do namorado que vende maconha.
Daí em diante, melhor deixar que você descubra os desdobramentos. Sem escorregar para o spoiler, posso dizer que O Hóspede abraça sem pudores sua condição de filme B. O diretor Adam Wingard, que depois assinaria uma retomada de A Bruxa de Blair (2016), a versão estadunidense do mangá Death Note (2017) e Godzilla vs Kong (2021), ecoa influências e uma estética dos anos 1980, em especial de A Morte Pede Carona (1986) e da obra de John Carpenter. Para além dos créditos de abertura que usam a tipografia característica do cineasta de Fuga de Nova York e Christine, o Carro Assassino, para além da trilha sonora com sintetizadores tensos, é possível identificar pontos em comum entre David e Michael Myers, o psicopata criado por Carpenter e a produtora e roteirista Debra Hill em Halloween (1978). Há inclusive cenas-tributo, como aquela em meio a lençóis pendurados nos varais.
Portanto, O Hóspede também é um filme sem vergonha de jorrar sangue e de retratar o mal como algo quase sobrenatural e imparável, tipo Michael Myers, tipo Christine, tipo as crianças platinadas de A Cidade dos Amaldiçoados, tipo a Coisa de O Enigma do Outro Mundo e tipo A Bruma Assassina. David parece ter sido urdido na mesma carpintaria: cínico e desprovido de compaixão, reforça o terror que significa a perda da individualidade; reafirma que estamos sempre à mercê de um forasteiro — um alienígena, um nevoeiro, um soldado – capaz de nos contaminar e perverter (e às vezes até abrimos a porta para ele); e nos relembra que pecados do Estado ou da sociedade cometidos no passado (seja remoto, seja recente) podem voltar à tona de forma arrasadora.