Os bastidores de Dolittle (2020), em cartaz no Telecine, no Google Play e no YouTube, prenunciavam o caro abacaxi em que se transformou o filme protagonizado por Robert Downey Jr. — o Homem de Ferro do universo cinematográfico da Marvel — e um dos campeões de indicações no Framboesa de Ouro (está empatado com 365 Dni), o prêmio de galhofa criado por um publicitário de Hollywood.
A um custo final de US$ 175 milhões, a produção já começou de forma equivocada: para assinar a nova adaptação do clássico literário sobre o veterinário que tem a habilidade de falar com os animais, o estúdio Universal escalou Stephen Gaghan, um cineasta sem o menor traquejo para personagens digitais, gerados por efeitos visuais, nem para a comédia de aventura com foco no público infantil. Bastava olhar para seu currículo, cheio de drama e de densidade: como roteirista de Traffic (2000), que lhe valeu um Oscar, traçou um panorama do narcotráfico entre os Estados Unidos e o México; em Syriana (2005), que ele também dirigiu, procurou desvendar os podres da indústria petrolífera; em Ouro (2016), acompanhou o filho de um garimpeiro e um geólogo na busca pelo metal precioso na Indonésia.
Assim, não foi surpresa que, após exibições-teste, a produtora tenha convocado outro diretor para refilmar um bocado de cenas — foram 21 dias de trabalho a cargo de Jonathan Liebesman, realizador de As Tartarugas Ninja (2014). Ainda que seja relativamente comum em superproduções, essa prática pode resultar em obras desequilibradas, como Liga da Justiça (2017), onde se percebe claramente o contraste entre a mão pesada de Zack Snyder e o tom mais solar e metido a engraçadinho de Joss Whedon, chamado para complementar a estreia cinematográfica da equipe de heróis da DC Comics.
Dolittle padece do mesmo mal. A versão inicial de Gaghan foi considerada séria demais, o que se depreende daquilo que chegou às telas: temos um protagonista paralisado pelo luto, uma tentativa de assassinato da rainha inglesa, um esquilo que jura vingança ao ser alvejado por um jovem e relutante caçador. E temos, em meio a isso, a correria típica dos filmes à la parque de diversões, as piadas sobre peido, bafo e outros odores, as lições de meia-tigela sobre amizade e união.
Trata-se de um filme excêntrico como o sotaque empregado por Downey Jr. ao interpretar o personagem criado em 1920 pelo escritor inglês Hugh Lofting, e que havia sido vivido por Rex Harrison no musical de 1967 que concorreu ao Oscar de melhor filme e por Eddie Murphy nas comédias alopradas de 1998 e 2001. Os críticos britânicos definiram como indistinguível (galês? escocês?) e quase ininteligível o tal sotaque. De fato, se não fossem as legendas, eu não teria entendido muitos dos diálogos que o doutor Dolittle trava com a curiosa fauna que habita sua mansão na Inglaterra do século 19.
Apesar de não ser longo e apesar do ritmo frenético, o filme pode ser uma maçada para os pais que acompanharem seus filhos. Os críticos dos EUA, do Canadá e do Reino Unido foram impiedosos: no site Metacritic, a nota é 26; no Rotten Tomatoes, apenas 14% das resenhas são favoráveis. Não por acaso, Dolittle foi indicado a seis categorias do Framboesa de Ouro, que, como manda a tradição, em 2021 será realizado na véspera do Oscar, ou seja, em 24 de abril. "Concorre" a pior filme, diretor, ator, roteiro, combo (Downey Jr. e seu sotaque) e remake ou sequência.
Mas, por pelo menos um instante, é engraçado conhecer animais como Chee-Chee (voz de Rami Malek, o oscarizado Freddie Mercury de Bohemian Rhapsody, na versão legendada), gorila com problemas de autoconfiança, Yoshi (John Cena), urso polar que morre de frio, e ratinhos que atuam como peças de um jogo de xadrez. Há, também, uma piada interna para nerds: Jip, o vira-lata intelectual de Dolittle, é dublado pelo inglês Tom Holland — que, nos filmes da Marvel, interpreta o Homem-Aranha, o "pet" do Homem de Ferro encarnado por Downey Jr. O ator norte-americano, por sua vez, não trouxe junto o carisma de Tony Stark. Parece ser somente por imposição do roteiro que a bicharada se arregimenta como se fossem Vingadores peludos.
Na trama, Dolittle é forçado a abandonar a tristeza pela morte da esposa quando a rainha é envenenada. Se ela morrer, o veterinário e seus pacientes vitalícios serão despejados (não me pergunte bem o porquê). Portanto, ele se empenha em viajar de navio até uma ilha misteriosa em busca de uma planta lendária, o único antídoto. Na jornada, surgirão perigos como o vilão Blair Müdfly (um estridente Michael Sheen) e o transtornado tigre (voz de Ralph Fiennes) de um rei meio pirata, meio muçulmano, Rassouli (Antonio Banderas).
Ah, como não poderia deixar de ser, depois da trilogia Como Treinar seu Dragão e do seriado Game of Thrones, haverá também um dragão. Sim, Dolittle recauchuta, sem muito brilho, situações e chistes de franquias tipo Piratas do Caribe e Shrek (deu um déjà vu danado quando o tigre se distrai do bote ao veterinário e passa a caçar um reflexo de luz, tal qual aconteceu com o Gato de Botas na animação do ogro verde). E, como os filmes da Marvel popularizaram, guarda até uma cena pós-créditos — mas fraquinha, fraquinha, pois não traz nenhuma revelação desconcertante ou projeção para uma sequência. Aliás, macacos me mordam se um dia houver um Dolittle 2.