
O GNC Moinhos e a Sala Eduardo Hirtz exibem desde esta quinta-feira (8) Virgínia e Adelaide (2024), filme rodado em Porto Alegre pelos diretores Jorge Furtado e Yasmin Thayná sobre a mulher negra que foi a primeira psicanalista brasileira: Virgínia Leone Bicudo (1910-2003).
É o 10º longa-metragem do gaúcho Furtado, 65 anos, cineasta de O Homem que Copiava (2003), Saneamento Básico, o Filme (2007) e O Mercado de Notícias (2014), e o primeiro de Yasmin, 32, que nasceu em Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, e tem no currículo os curtas documentais KBELA (2015) e Fartura (2019).
O filme reconstitui a relação de Virgínia com a psicanalista alemã Adelheid Lucy Koch (1896-1980), judia que em 1936 veio para o Brasil, escapando perseguição nazista. Juntas, elas fundaram e popularizaram a psicanálise no país, quebrando barreiras e preconceitos. Foram médica e paciente por cinco anos, colegas por mais de três décadas e grandes amigas pela vida inteira.

Na trama escrita por Furtado, Virgínia é interpretada por Gabriela Correa, e o papel de Adelaide é vivido por Sophie Charlotte. São as únicas personagens em cena, mas, como é característico na carreira do diretor de Ilha das Flores (1989), o filme é formalmente dinâmico. Combina cenas ficcionais, sob a direção de fotografia de Lívia Pasqual, e trechos documentais, com imagens de arquivo inseridas pelo editor Giba Assis Brasil. Em alguns momentos, as duas atrizes quebram a quarta parede, falando diretamente para o público, como se estivessem no palco de um teatro.
Também como é típico nas obras de Furtado, a trajetória das duas personagens se faz acompanhar por uma contextualização da época e por uma reflexão sobre questões políticas e mazelas sociais do Brasil.
"O filme nasceu da minha ignorância", diz o diretor Jorge Furtado

Confira a entrevista concedida por Jorge Furtado, um dos diretores do filme Virgínia e Adelaide (2024):
Como surgiu a ideia de contar a história de Virgínia Leone Bicudo e Adelaide Koch?
A ideia do filme Virgínia e Adelaide surgiu da minha ignorância, quando em 2018 fiquei sabendo que a primeira psicanalista do Brasil, da América do Sul, era uma mulher negra nos anos 1930 em São Paulo. Achei isso muito surpreendente e achei vergonhoso que eu não tivesse ouvido falar o nome dela. Aí eu comecei a procurar, a pesquisar e encontrei a Adelaide Koch, analista alemã fugida do nazismo. Judia, ela se refugiou em São Paulo, e o encontro das duas, em 1937, fundou a psicanálise no Brasil.
A Virgínia foi a primeira analisada, a primeira analista, a primeira pessoa a deitar num divã na América do Sul. Ela já era importante pelo seu trabalho na sociologia, mas a partir dali ela se tornou uma importante psicanalista, fundou a Sociedade Brasileira de Psicanálise em São Paulo, a de Brasília também, a Revista Brasileira de Psicanálise, praticamente criou o podcast, porque ela inventou um programa de rádio em que comentava a psicanálise e encenava: ela escrevia a dramaturgia para atores de rádio que faziam a cena e depois ela analisava a relação dos personagens. Ela era uma mulher inteligentíssima, pioneiríssima, que depois se tornou amiga da Melanie Klein (psicanalista austríaca, 1882-1960).

Um letreiro no início do filme diz que "todos os fatos, nomes, datas e lugares são reais. O resto é ficção". Pode falar sobre o processo de escrita do roteiro? Como criou os diálogos entre as personagens e recriou as sessões de psicanálise?
Escrevi o roteiro baseado em bastante pesquisa, muita pesquisa, muitas entrevistas da Virgínia, inclusive algumas gravadas com vídeo e áudio e outras de jornal. Da Adelaide, eu só conheço três entrevistas que ela deu. E houve também os muitos textos que as duas publicaram. Claro que toda a parte das consultas eu tive que inventar, não existe registro, mas são conversas baseadas em cartas, em entrevistas e opiniões que elas deram, com uma parte de ficção grande. Alguns trechos das consultas são quase que literais de entrevistas da Virgínia, mas a maior parte é ficção.
Pode falar sobre o contexto histórico, sobre os paralelos entre o Estado Novo implementado por Getúlio Vargas no Brasil e a ascensão do nazismo na Alemanha? Na sua opinião, o que essa história tem a dizer para o Brasil de hoje?
Eu queria entender como é que um país escolhe o fascismo e comecei a estudar a Alemanha nazista. Há muitas semelhanças com o que aconteceu nos anos 1930 na Alemanha e o que está acontecendo no mundo hoje, onde as pessoas são seduzidas por farsantes, demagogos, que têm tendências autoritárias e parecem que vão resolver todos os problemas. As pessoas se encantam com esses tipos e acaba da pior maneira possível. É bom lembrar que o dia da estreia do filme, 8 de maio, é o aniversário de 80 anos do dia do armistício na Europa, o dia do fim da Segunda Guerra Mundial, a guerra que acabou expulsando a Adelaide da Europa.
O filme começa em novembro de 1937, quando Virgínia e Adelaide se conheceram em São Paulo. Foi nesse exato momento que o Getúlio Vargas, que era presidente, deu um golpe de Estado, deu o autogolpe e criou o Estado Novo. Naquele momento, o Brasil se tornava uma ditadura que flertava com o nazismo, Getúlio não tinha decidido ainda em que lado da guerra o Brasil ia entrar e estava negociando com americanos e nazistas também. Havia um movimento, o integralismo, que era de inspiração fascista, que emulava exatamente o gesto nazista, os símbolos do nacionalismo, então, aquele era um momento muito semelhante com o que nós vivemos recentemente, quando entramos em um governo, em 2018, de inspiração fascista, nacionalista, que pregava o anticomunismo, a defesa da família, e agora sabemos que tentou também um autogolpe, que tentou um golpe de Estado que felizmente não deu certo. Nós não estamos numa ditadura por bem pouco.

Gostaria que você também falasse sobre a forma narrativa, que cruza a ficção com o documentário, o cinema com o teatro.
Nós trabalhamos no roteiro, eu e a Yasmin Thayná, com cinco linhas narrativas diferentes, que no roteiro eram divididas por cores, inclusive.
Nós tínhamos uma linha narrativa que a gente chamava de ficção, que é quando as duas atrizes falam uma com a outra, as personagens ignorando a presença da câmera, o que é a ficção tradicional que se conhece do cinema.
Depois tinha uma segunda linha narrativa que a gente chamava de entrevistas, onde tanto Adelaide como Virgínia falam para alguém que está ao lado da câmera, como se fosse uma entrevista, contando a sua vida, mas sabendo que estão falando para uma câmera. É como se fosse uma entrevista que a gente tivesse resgatado do passado, mas feita com as atrizes.
A terceira linha narrativa a gente chamava de teatro: as atrizes, fazendo as personagens, falam diretamente para a câmera, para o espectador, eliminando a quarta parede.
Há ainda momentos de documentário mesmo, com filmes antigos, fotos antigas, cenas de arquivo. E há ainda as cartas que elas escreveram uma para a outra, que são narradas pelas atrizes, e também as palestras e aulas que elas deram, que a gente reconstitui.

Por que convidou a Yasmin Thayná para dividir com você a direção do filme? Aliás, como vocês se dividiram nesse trabalho?
Quando resolvi fazer este filme que contava a história de uma mulher brasileira negra que enfrentou o racismo para criar uma coisa muito importante, logo pensei que deveria dividir a direção, convidar alguém para dirigir junto comigo, que fosse uma mulher, uma diretora negra. Eu já conhecia o trabalho da Yasmin, desde KBELA e também Fartura, e trabalhamos no mesmo projeto, um programa do Instituto Moreira Salles, com uma curadoria do Kleber Mendonça Filho, que convidou a mim e convidou a ela também para fazer curtas durante a pandemia.
Foi fundamental a presença da Yasmin em Virgínia e Adelaide. Não só porque ela deu juventude, novidade para a câmera, para os movimentos, para a encenação, mas principalmente porque ela trouxe para o filme uma alegria que ele não teria se fosse só meu. Eu, se fosse fazer o filme sozinho, ele seria muito mais triste. A Yasmin insistiu e conseguiu impregnar o filme com a alegria da Virgínia, porque ela lembrou que a Virgínia, apesar de ser uma cientista séria e uma mulher que passou dificuldades para se impor profissionalmente, ela era muito alegre, ela tinha uma gargalhada que era conhecida, ela era muito bem-humorada nas suas entrevistas, ela gostava de dançar, de namorar, de passear, gostava de moda.
O protagonismo negro é uma marca em seus filmes. Há pelo menos 15 longas, curtas ou séries assim. Por quê?
Desde 1986, com o curta O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, eu sempre tive uma preocupação de fazer com que os filmes representem o Brasil. O Brasil é o país mais racista do mundo, e isso não é minha opinião. O Brasil é o único país de maioria negra que nunca elegeu um líder negro. O único, não há outro.
Então, nós temos o racismo como uma marca brasileira, e isso tem que ser enfrentado de todas as maneiras. O audiovisual é uma delas. Não é que os filmes tenham que falar sobre isso sempre, às vezes não precisa falar sobre isso: O Homem que Copiava (2003) não fala sobre isso, o Saneamento Básico também não fala sobre isso, e ambos têm protagonistas negros. Acho que é sempre importante pensar nisso e vou continuar fazendo isso.
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