Na natureza hollywoodiana, nada se cria, tudo se transforma – em rios e montanhas de dinheiro. Se pudesse esfregar uma lâmpada mágica, um produtor de cinema saberia muito claramente quais seriam os seus três desejos:
— Quero uma franquia.
— Quero um remake.
— Quero um spin-off.
Os números não mentem: ano a ano, os projetos vingadores nas bilheterias mundiais constituem um ciclo sem fim de continuações e refilmagens, além de uma guerra infinita de super-heróis. Em 2015, Star Wars: O Despertar da Força encabeçou a lista dos campeões de audiência, seguido por Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros e Velozes e Furiosos 7. No top 10 de 2016, oito títulos se enquadravam nessas categorias, incluindo a versão com "atores de verdade" da Disney para Mogli. O domínio foi total em 2017, ano de Star Wars: O Último Jedi, e, em 2018, Bohemian Rhapsody fez solo em um ranking comandado por Vingadores: Guerra Infinita. A temporada atual segue a tendência: Vingadores: Ultimato está no topo de uma relação que inclui as novas roupagens para O Rei Leão e Aladdin, Toy Story 4 e Hobbs & Shaw, um spin-off de Velozes e Furiosos (veja os rankings aos final desta coluna).
Parafraseando o célebre paradoxo de Tostines (vende mais por que é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?), fica a dúvida: Hollywood oferece por que é o que o público assiste ou o público assiste por que é o que Hollywood oferece?
Bem, Brinquedo Assassino (Child's Play), que entra em cartaz nesta quinta (22) nos cinemas do Brasil, é o 26º lançamento americano no país, em 2019, que ou dá sequência a uma franquia, ou é uma refilmagem. Pode-se dizer que o filme dirigido pelo norueguês Lars Klevberg – de Morte Instantânea – é as duas coisas, ao retomar Chucky, o boneco sinistro e homicida que estrelou sete longas entre 1988 e 2017. Seus produtores são os mesmos de
It – A Coisa (2017), que, ao readaptar a obra do escritor Stephen King (já havia gerado uma minissérie e um telefilme em 1990), tornou-se o filme de terror com a maior bilheteria da história, com US$ 700 milhões, e que, claro, ganhou uma continuação. Com um elenco mais prestigiado (James McAvoy e Jessica Chastain juntam-se a Bill Skarsgard), It – Capítulo 2 está previsto para estrear por aqui em 5 de setembro.
Pelo menos o novo Brinquedo Assassino busca alguma singularidade em relação aos anteriores. De cara, muda a origem do boneco, não mais o hospedeiro da alma do serial killer Charles Lee Ray. O sobrenatural deu lugar à tecnologia: Buddi é um brinquedo dotado de inteligência artificial que, apesar da aparência assustadora, faz um sucesso danado (só na ficção alguém o compraria). Ele é fabricado por uma multinacional dos Estados Unidos, a Kaslan, no Vietnã, onde programadores trabalham sob um regime de escravidão. Revoltado com a humilhação e os maus-tratos pelo gerente, um deles remove todas as travas de segurança do exemplar que estava montando – e é esse que, mais tarde, vai parar na casa de Andy, agora um adolescente, interpretado por Gabriel Bateman (o Jack Hawthorne do seriado American Gothic). O garoto recém se mudou para um subúrbio com a jovem mãe, Karen (Aubrey Plaza, a April da série Parks and Recreation), empregada da loja de brinquedos Zed Mart, e é vizinho de um policial, Mike (Brian Tyree Henry) – que, a julgar pelo filme, deve ser o único da cidade.
Sentindo-se isolado, Andy encontra um ombro amigo no boneco que batiza de Chucky depois de tentar emplacar Han Solo – uma piadinha metalinguística com o ator que dubla o pequeno assassino, Mark Hamill, o Luke Skywalker da trilogia Star Wars original. Na mesma linha, Klevberg propõe uma curiosa aproximação com E.T. (1982), o clássico de Steven Spielberg: há um pôster no quarto de Andy, que inclusive veste um casaco vermelho como o de Elliot, o dedo de Chucky acende como o do extraterrestre e o boneco também aprende sobre o mundo assistindo TV. Aprende, por exemplo, que nos divertimos com filmes de horror cruéis e sanguinolentos tipo O Massacre da Serra Elétrica (1974). Poderia soar como autocrítica – banalizamos, glorificamos e, por fim, inspiramos a violência –, mas Klevberg não se demora nisso, afinal, há crueldades a mostrar e sangue a jorrar. E como jorra! Este Brinquedo Assassino não tem a menor vergonha de esfaquear, escalpelar e esquartejar.
É quando esquece essa natureza gore que o filme tem seus melhores momentos, aqueles que remetem não às genéricas franquias de terror, mas aos episódios de Black Mirror. A Kaslan é uma espécie de Google, onipresente e onisciente em um modo de vida no qual nos tornamos dependentes dos dispositivos eletrônicos – no começo da história, Andy refere-se a seu celular como seu único passatempo. Uma personagem aparentemente inocente acaba pagando um preço alto pela vaidade que exibe ao fazer uso de um carro autônomo. Os perigos da conectividade são reportados seguidamente – imaginem um mundo em que seus desabafos íntimos fossem trazidos à tona para uma grande audiência. Pensem em como seria se máquinas utilizassem nossas lembranças como armadilhas contra nós mesmos, se brinquedos ou passatempos capturassem informações e preferências nossas.
E se nossos passos digitais fossem todos vigiados, se nossas vontades estivessem todas mapeadas por uma inteligência artificial.
Ops: isso tudo já existe, né? Na era da internet das coisas e das redes sociais, estamos sempre na companhia de um Chucky.
O império do mais do mesmo
Continuações, spinoffs e refilmagens dominam amplamente as bilheterias. Somando os 10 campeões de cada ano, de 2015 a 2019, correspondem a 86% do mercado:
2015
- Star Wars: O Despertar da Força: US$ 2 bilhões
- Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros: US$ 1,6 bilhão
- Velozes e Furiosos 7: US$ 1,5 bilhão
- Vingadores: A Era de Ultron: US$ 1,4 bilhão
- Minions: US$ 1,1 bilhão
- 007: Spectre: US$ 880 milhões
- Divertida Mente: US$ 857 milhões
- Missão: Impossível Nação Fantasma: US$ 682 milhões
- Jogos Vorazes: A Esperança – O Final: US$ 653 milhões
- Perdido em Marte: US$ 630 milhões
2016
- Rogue One: Uma História Star Wars: US$ 1 bilhão
- Procurando Dory: US$ 1 bilhão
- Zootopia: US$ 1 bilhão
- Mogli – O Menino Lobo: US$ 966 milhões
- A Vida Secreta dos Pets: US$ 875 milhões
- Batman vs Superman: US$ 873 milhões
- Animais Fantásticos e Onde Habitam: US$ 814 milhões
- Deadpool: US$ 783 milhões
- Esquadrão Suicida: US$ 746 milhões
- Doutor Estranho: US$ 677 milhões
2017
- Star Wars: O Último Jedi: US$ 1,3 bilhão
- A Bela e a Fera: US$ 1,2 bilhão
- Velozes e Furiosos 8: US$ 1,2 bilhão
- Meu Malvado Favorito 3: US$ 1 bilhão
- Jumanji: US$ 962 milhões
- Homem-Aranha: De Volta ao Lar: US$ 880 milhões
- Wolf Warrior 2: US$ 870 milhões
- Guardiões da Galáxia Vol. 2: US$ 863 milhões
- Thor: Ragnarok: US$ 854 milhões
- Mulher-Maravilha: US$ 821 milhões
2018
- Vingadores: Guerra Infinita: US$ 2 bilhões
- Pantera Negra: US$ 1,3 bilhão
- Jurassic World: Reino Ameaçado: US$ 1,3 bilhão
- Os Incríveis 2: US$ 1,2 bilhão
- Aquaman: US$ 1,1 bilhão
- Bohemian Rhapsody: US$ 900 milhões
- Venom: US$ 856 milhões
- Missão: Impossível – Efeito Fallout: US$ 791 milhões
- Deadpool 2: US$ 785 milhões
- Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald: US$ 653 milhões
2019*
- Vingadores: Ultimato: US$ 2,8 bilhões
- O Rei Leão: US$ 1,4 bilhão
- Capitã Marvel: US$ 1,1 bilhão
- Homem-Aranha: Longe de Casa: US$ 1,1 bilhão
- Aladdin: US$1 bilhão
- Toy Story 4: US$ 1 bilhão
- The Wandering Earth: US$ 700 milhões
- Ne Zha: US$ 583 milhões
- Como Treinar Seu Dragão 3: US$ $519 milhões
- Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw: US$ 440 milhões
*Até 20/8
A vingança dos nerds
Puxados pelos Vingadores, os filmes de super-herói conquistaram o topo (Ultimato superou Avatar e tornou-se a maior bilheteria da história) e são maioria no ranking dos campeões dos últimos cinco anos: