A Netflix não tem memória, mas pelo menos mantém um olhar atento para o cinema contemporâneo produzido longe de Hollywood. Premiados no Festival de Veneza, os filmes Tribunal (2014) e O Discípulo (2020), ambos escritos e dirigidos por Chaitanya Tamhane, são duas joias indianas no catálogo da plataforma de streaming — que inclui o francês Divinas (2016), o belga Girl (2018), italiano Lazzaro Felice (2018) e o senegalês Atlantique (2019), todos laureados em Cannes, além do brasileiro M-8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019), do britânico O Que Ficou para Trás (2020), do japonês Laço Materno (2020), do mexicano Ya No Estoy Aquí (2019), do polonês Rede de Ódio (2020) e do taiwanês A Sun (2019), só para citar outros destaques.
Tribunal ganhou em Veneza a mostra Horizontes, mais focada em novas tendências, e o troféu Luigi de Laurentis, destinado a diretores estreantes. O Discípulo recebeu a Osella de Ouro de melhor roteiro e o prêmio concedido pela Federação Internacional de Críticos de Cinema, a Fipresci. Os dois filmes contam histórias bem diferentes, mas guardam traços em comum.
O jovem cineasta indiano — tem apenas 34 anos — investe na sobriedade temática e formal. Embora a música esteja no âmago de O Discípulo e desempenhe um papel importante em Tribunal, estamos longe também do que se convencionou chamar de Bollywood, aqueles filmes musicais com três horas de duração (os de Tamhane giram em torno de duas) que misturam cantoria, dança, romance, comédia e ação. Nestas duas obras, o estilo é praticamente documental, e há poucos cortes e pouca variação nos enquadramentos. O diretor gosta de deixar a câmera estática enquanto as coisas vão acontecendo a sua frente, sem se preocupar com o tempo ou com uma suposta inação — é como se fizesse recortes da vida real e ordinária. Nesse sentido, é exemplar a passagem de Tribunal em que acompanhamos o final de uma audiência até seus funcionários se despedirem e apagarem as luzes da sala, sem que isso signifique o epílogo do filme.
Para além dos aspectos formais, para além desse naturalismo, o que irmana Tribunal e O Discípulo é sua capacidade de, ao focar em questões muito locais da Índia, pintar um retrato universal.
Tribunal é sobre o julgamento de um veterano compositor de canções de protesto, Narayan Kamble, interpretado por Vira Sathidar — ele próprio um poeta, músico e ativista em prol das castas inferiores na sociedade indiana, morto em abril de 2021, aos 62 anos, vítima de covid-19. Narayan é acusado de, durante uma apresentação em uma favela, ter incitado o suicídio de um operário encontrado morto no esgoto.
Como o título indica, Tamhane concentra-se no tribunal de Justiça. Mas ele também acompanha seus personagens fora de lá, o que é fundamental para entendermos como agem dentro daquele ambiente. Temos a viúva do operário, Sharmila Pawar (papel de Usha Bane), encarnando as condições precárias impostas a muitos trabalhadores mundo afora. Temos o advogado de defesa, Vinay Vora (Vivek Gomber), ainda jovem e em conflito com seus pais: está refletindo, na vida privada, o combate a leis antiquadas e retrógradas, e também à corrupção policial, ao obscurantismo e ao fanatismo (religioso, político etc) — um quarteto da pesada que não é exclusividade da Índia. Temos a promotora pública Nutan (Geetanjali Kulkarni), que no fundo age como uma dona de casa aferrada às tradições, moralista e punitivista (uma personagem comum em outras paragens). E temos o juiz Sadavarte (Pradeep Joshi), representando a elite insensível à debilitação da saúde de Narayan por causa dos sucessivos adiamentos no julgamento — o que importa é que estão chegando suas férias de verão, nas quais um sujeito que deveria primar pela racionalidade vai demonstrar um lado bastante esotérico.
O Discípulo é sobre o processo de autoaperfeiçoamento de um jovem cantor de ragas, elemento central e transcendental na música clássica indiana, Sharad Nerulkar (encarnado pelo estreante Aditya Modak). O protagonista renunciou ao trabalho e postergou a vida amorosa para seguir as lições do pai já falecido e de uma mítica maestrina, Maai, de quem possui raras gravações de palestras. Podemos ouvir esses ensinamentos, fundidos à trilha sonora, em algumas escapadas do rigor documental que Tamhane se permite: os passeios de moto em câmera lenta por ruas surpreendentemente desertas na noite de Mumbai— o nome oficial da populosa cidade de Bombaim.
Sharad acredita piamente nas palavras de Maai: "Através da música, conhecemos o caminho do divino". O que pode se tornar uma busca eterna, com entrega e sacrifício, fome e solidão. A tarefa mostra-se ainda mais árdua para o personagem, volta e meia repreendido por seu guru (vivido pelo cantor Arun Dravid) ou frustrado pelo resultado de concursos e festivais. O motivo é tão simples quanto complexo, fazendo de O Discípulo um filme que extrapola as fronteiras da cultura indiana e que reflete sobre inquietações presentes em muitos ramos de atividade: o que fazer quando nossos sonhos esbarram em nossas limitações? A técnica pode compensar a falta de talento? Ao herdar ou mesmo assumir aspirações paternas e maternas, não estamos nos condenando a comparações e sufocando vocações? É possível fazer aquilo de que se gosta e, mais do que isso, ser reconhecido e recompensado?