Não é incomum a Academia de Hollywood destacar, no Oscar, filmes que retratem a própria indústria cinematográfica, homenageiem seus expoentes, reflitam sobre o ofício e enalteçam a magia do cinema. Há uma lista que vai de Crepúsculo dos Deuses (1950) a Mank (2020), passando por A Última Sessão de Cinema (1971), O Jogador (1992), O Artista (2011), La La Land (2016) e Era uma Vez em Hollywood (2019), entre outros. De vez em quando, também valoriza o seu consumidor, indicando ao principal prêmio campeões de bilheteria, como Titanic (1997), a trilogia O Senhor dos Anéis (2001-2003) e Pantera Negra (2018).
Mas talvez nunca tenha existido uma edição como a 95ª do Oscar, que será realizada no dia 12 de março, em Los Angeles. Divulgada nesta terça-feira (24), a lista de indicados à estatueta dourada conjuga de modo extraordinário a autocelebração com a reflexão e a sustentação comercial.
Vamos começar com o líder em indicações (11), Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, que concorre em categorias como melhor filme, direção (Daniel Kwan e Daniel Scheinert) e atriz (Michelle Yeoh). Trata-se de uma coleção de citações cinematográficas. Pode-se, por exemplo, traçar um paralelo com Matrix (1999) na trama sobre a imigrante chinesa que descobre sua existência em infinitos universos paralelos e precisa acessar as experiências e habilidades (incluindo o kung fu, como Neo) de suas contrapartes para combater a ameaça de um ser maligno. Já a pochete que vira arma nas mãos do marido da protagonista é claramente uma alusão ao cinto com ventosa que o ator Ke Huy Quan utilizava, na pela do personagem Data, em Os Goonies (1985).
Algumas referências são explícitas, como as paródias da clássica ficção científica 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001) e do desenho animado da Pixar Ratatouille (2007). Outras são para cinéfilos mais tarimbados, como a piada com um projecionista que lembra uma de Buster Keaton em Bancando o Águia (Sherlock Jr., 1924) ou o exercício de metalinguagem relacionado à animação japonesa Paprika (2006). Aliás, os Daniels têm o mérito de não se restringirem a Hollywood: a mais bela e surpreendente das homenagens é a Amor à Flor da Pele (2000), filme de Wong Kar-wai sobre o romance não consumado entre dois vizinhos cujos cônjuges estão tendo um caso, na Hong Kong dos anos 1960.
Com sete indicações, incluindo melhor filme, melhor direção e melhor atriz (Michelle Williams), Os Fabelmans é uma autobiografia disfarçada do cineasta Steven Spielberg, três vezes ganhador do Oscar — como diretor e produtor de A Lista de Schindler (1993) e como realizador de O Resgate do Soldado Ryan (1999). A história começa na fila para uma sessão de O Maior Espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. De Mille, e termina com uma visita do alter ego de Spielberg, o jovem Sammy Fabelman, à sala do mestre John Ford. Entre um fato e outro, Sammy precisa lidar com seus problemas familiares e escolares ao mesmo tempo em que descobre não apenas técnicas de filmagem — vide os efeitos visuais em um bangue-bangue caseiro —, mas sobretudo os poderes do cinema. Se o desastre de trem no filme de De Mille provocou um trauma, por exemplo, a reprodução, com uma câmera super-8 e um trenzinho de brinquedo, traz a cura.
Os Fabelmans nos convida a um passeio pelos temas, pela carreira e pela vida pessoal de Spielberg — por extensão, pela vivência de todos os cineastas e de todos os espectadores. Os filmes aparecem como válvulas de escape, como metáforas, como meio de dizer aquilo que não se consegue verbalizar, como meio de mostrar aquilo que não se consegue ou não se quer enxergar.
Elvis, que soma oito indicações, incluindo melhor filme e ator (Austin Butler), é a cinebiografia do Rei do Rock — que também foi um astro hollywoodiano, estrelando títulos como Ama-me com Ternura (1956), Prisioneiro do Rock and Roll (1957), Balada Sangrenta (1958), Feitiço Havaiano (1961) e O Seresteiro de Acapulco (1963). Ao contar a história de Elvis Presley, o cineasta Baz Luhrmann parece emular Cidadão Kane (1941) e Amadeus (1984). À la Salieri na oscarizada cinebiografia de Wolfgang Amadeus Mozart, o coronel Tom Parker (Tom Hanks) vai rememorar sua conturbada relação profissional com o cantor. Pode-se creditar a Parker tanto a ascensão quanto a derrocada de Elvis (que firmou uma espécie de pacto com o Diabo). Mas se o compositor italiano se sente culpado pela morte precoce do gênio austríaco, o empresário recusa o rótulo de vilão na história do roqueiro morto com apenas 42 anos. Pelo contrário. Chega a dizer que foram feitos um para o outro.
A exemplo de Cidadão Kane, esta é a história de como um garoto pobre tornou-se um rei solitário. Também como na obra-prima de Orson Welles, o filme lança mão de flashbacks e emprega diferentes técnicas narrativas, sempre procurando casar o enredo com o formato. Se Elvis era fã dos gibis do Capitão Marvel Jr., há cenas que simulam páginas de quadrinhos. Se o cantor virou ator de Hollywood, há uma sequência que remete aos antigos cinejornais.
Entre os 10 indicados ao Oscar de melhor filme, estão as duas maiores bilheterias de 2022: Avatar: O Caminho da Água, com US$ 2,02 bilhões, e Top Gun: Maverick, US$ 1,48 bilhão. Embora não abordem diretamente o fazer cinema, ambos oferecem reflexões sobre a indústria e apontam caminhos. Avatar 2, de James Cameron, é entediante nas suas mais de três horas de duração e preguiçoso no roteiro (está ocupando a vaga que poderia ser ser Aftersun ou Babilônia, para citar apenas dois títulos bem melhores). Mas é inegável que representa um novo salto tecnológico, com um realismo extremo aplicado em um universo criado praticamente todo por computação gráfica, que inclui gigantescas criaturas marinhas e personagens surgidos graças à técnica da captura de expressões e movimentos dos atores.
Dirigida por Joseph Kosinski, a sequência de Top Gun: Ases Indomáveis (1986) vai na direção oposta. Logo no início do filme, um oficial que prega a troca dos pilotos por drones sentencia ao protagonista encarnado por Tom Cruise: "O fim é inevitável. Seu tipo está a caminho da extinção". Maverick retruca com a habitual e sardônica autoconfiança: " Talvez sim, senhor. Mas não hoje". É uma resposta transcendental. No nível da narrativa, serve como um comentário sobre a automação do trabalho, uma defesa das habilidades humanas — que incluem o afeto, a coragem e o improviso — diante da revolução tecnológica. Mas também funciona como um lema do próprio Cruise, 60 anos, uma declaração de resistência à passagem do tempo e à vigência dos efeitos visuais em Hollywood. Abençoado pela genética e rigoroso no seu condicionamento físico, ele segue dispensando dublês nas cenas de ação. O princípio vale para o restante do elenco também: o ator ensinou todos a voar, em busca da maior autenticidade. Nenhum comanda de verdade os jatos, mas as manobras vertiginosas e os combates acrobáticos são os mais reais possíveis.
Outros dois sucessos de público foram lembrados. Sexto colocado no ranking, com US$ 840,1 milhões, Pantera Negra: Wakanda para Sempre disputa cinco troféus, sendo o principal deles o de atriz coadjuvante (Angela Bassett). O sétimo, Batman (US$ 770,9 milhões), compete em três categorias técnicas.
Há mais três filmes que envolvem cinema. Babilônia, de Damien Chazelle, indicado aos prêmios de design de produção, figurinos e música original (por mim, deveria disputar também as estatuetas de melhor filme, atriz, com Margot Robbie, e edição), está ambientado na Hollywood dos anos 1920 e 1930 e reconstitui a complicada transição do cinema mudo para o cinema falado. Na categoria de fotografia, aparecem Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades, em que Alejandro González Iñárritu, inspirado no clássico Oito e Meio (1963), de Federico Fellini, mistura suas memórias e sua experiência na trajetória de um fictício documentarista que trocou o México por Los Angeles e agora está em crise existencial; e Império da Luz, de Sam Mendes, um romance que se desenvolve em um cinema antigo na costa sul da Inglaterra, na década de 1980.
A temporada 2022 foi tão fértil nesse olhar para dentro, que ficaram de fora do Oscar outros dois filmes badalados. Em Ela Disse, que entrou na lista dos 10 melhores do ano pelo American Film Institute (AFI), concorreu ao Globo de Ouro de atriz coadjuvante (Carey Mulligan) e disputa dois Baftas (roteiro adaptado e atriz coadjuvante), reconstitui a caçada ao maior predador sexual de Hollywood: o produtor Harvey Weinstein, ganhador do Oscar por Shakespeare Apaixonado (1998) e indicado por Gangues de Nova York (2002).
Igualmente presente no top 10 do AFI e também no ranking da revista francesa Cahiers du Cinèma (mas ignorado pelo Bafta e pelo Globo de Ouro), Não! Não Olhe!, de Jordan Peele, usa elementos do faroeste e da ficção científica para fazer uma homenagem e uma crítica. Por um lado, sugere que um fato, uma coisa — no caso, uma invasão alienígena — só é real quando captado por uma câmera. Por outro, examina o histórico apagamento dos negros em Hollywood. O filme começa mostrando a primeira imagem em movimento, a de um jóquei montando um cavalo, produzida em 1879 pelo fotógrafo Eadweard Muybridge. Esse nome e o do animal, Occident, correram o mundo, mas do homem negro que estava sobre a sela quase nada se sabe. Coube a Peele criar sua identidade e sua linhagem.