A morte não é o fim, diz uma personagem de Pantera Negra: Wakanda para Sempre (Black Panther: Wakanda Forever), que estreia nesta quinta-feira (10) nos cinemas. Na verdade, a morte é o início no 30º filme do Universo Cinematográfico Marvel, o MCU na sigla em inglês (confira um ranking do pior ao melhor).
Convém ao espectador chegar bem cedo à sessão, porque a aguardada sequência de Pantera Negra (2018) — a única aventura de super-herói indicada ao Oscar de melhor filme — já começa prestando homenagem ao ator que encarnava o rei T'Challa, Chadwick Boseman, morto em agosto de 2020, aos 43 anos, em decorrência de um câncer colorretal. Na primeiríssima cena do longa-metragem dirigido por Ryan Coogler (o mesmo realizador do anterior), Shuri, a princesa cientista interpretada por Letitia Wright, reza para uma divindade:
— Bast, permita-me curar meu irmão.
Wakanda é esse fictício e utópico reino africano, onde ciência e religiosidade convivem harmoniosamente, onde a alta tecnologia está vinculada a rituais e saberes tradicionais. Mas os recursos e os esforços de Shuri são em vão: o coração de T'Challa — cujo corpo jamais é visto na tela — para de bater.
Se este é um começo sui generis para um filme de super-herói, o que se segue é um funeral sui generis. Shuri, a rainha Ramonda (Angela Bassett, esplendidamente bela e vigorosa aos 64 anos), M'Baku (Winston Duke) e os demais integrantes da corte de Wakanda estão todos vestidos de branco. A procissão é triste, mas no entorno o povo dança em memória ao nobre monarca. Depois que o caixão preto adornado, em prata, por emblemas da máscara do Pantera Negra e da típica saudação de braços cruzados chega a seu destino final, uma montagem recupera imagens de Boseman na pele do personagem, até formar o logotipo da Marvel.
O silêncio desse momento é um indício de que Pantera Negra: Wakanda para Sempre será um dos mais sóbrios filmes da Marvel — se não for o mais sóbrio. As piadas são escassas e estão nas bocas certas, como a da adolescente Riri Williams (Dominique Thorne), uma gênia que ingressou precocemente no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A música não é onipresente, e algumas das composições do sueco Ludwig Göransson (oscarizado por Pantera Negra) alternam-se entre o fúnebre e o aterrador. O contraste fica por conta dos esfuziantes figurinos de Ruth E. Carter (também ganhadora da estatueta dourada pelo longa anterior), que combina inspiração afrofuturista com elementos étnicos.
Os temas também são sérios no roteiro escrito por Coogler e Joe Robert Cole. Se em Pantera Negra a dupla abordou a herança nefasta do colonialismo e da escravização, a desigualdade social, a ganância militar e o isolacionismo político, em Wakanda para Sempre trabalham as diferentes formas que temos para lidar com o luto e as diferentes formas de povos oprimidos e explorados reagirem.
Por um lado, o filme faz um comovente mas respeitoso exercício de metalinguagem, pois não apenas os personagens choram a morte de T'Challa, mas também os atores sentem a falta de seu estimado colega de elenco. E se o público entra no cinema já ciente de que a reverência a Boseman poderá provocar lágrimas, acontecimentos da trama geram algo raro nas produções do MCU: o risco emocional.
Pelo outro lado, Wakanda para Sempre permite à Marvel continuar a expansão de seu universo, apresentando novos mundos e novos personagens, pavimentando o caminho para futuras aventuras (a própria Riri terá uma série, Ironheart, prevista para 2023). Tudo começa com a busca pelo vibranium, o metal superpoderoso que, supostamente, só é encontrado nas terras africanas. Em discurso na ONU, a rainha Ramonda expõe a hipocrisia dos países ocidentais, que, pelas costas, buscam se apoderar do vibranium. Em uma missão no Oceano Atlântico, uma equipe paramilitar dos Estados Unidos acaba deparando com o exército de uma nação submarina, Talokan, que é comandada por Kukulkan, conhecido pelos habitantes da superfície como Namor.
Interpretado pelo mexicano Tenoch Huerta Mejía, com orelhas pontudas e asas nos pés, Namor é um dos mais antigos super-heróis dos quadrinhos. Surgiu em 1939, criado por Bill Everett. Veio antes, portanto, de Aquaman, seu similar na rival da Marvel, a DC, lançado nos gibis em 1941. Mas como no cinema Aquaman estreou antes (em Liga de Justiça, de 2017) e já houve uma representação do reino de Atlântida (no filme solo de 2018), Coogler e Cole decidiram criar uma origem totalmente diferente para o personagem. Ao amalgamar mitos e lendas mesoamericanas — Talokan é, presumivelmente, Tlalocan, cidade asteca afundada pelo deus da chuva, Kukulkan é o nome de uma divindade maia —, Wakanda para Sempre pode enfurecer os puristas e os conservadores, ao mesmo tempo em que oferece um espelho embaraçoso sobre a aniquilação dos povos nativos da América pelos invasores europeus.
Há mais inovações, ainda que à primeira vista possam não saltar aos olhos. Sem alarde, a Marvel fez seu primeiro filme com uma superequipe feminina. A exemplo do recente A Mulher Rei (2022) — título com o qual há também semelhanças temáticas —, Wakanda para Sempre conta uma história de união, resistência, amadurecimento e vingança protagonizada por mulheres negras. Além de Shuri, Ramonda e Riri, temos Nakia, a espiã interpretada por Lupita Nyong'o, e três guerreiras Dora Milaje: Okoye (Danai Gurira), Ayo (Florence Kasumba) e Aneka (Michaela Coel, da minissérie I May Destroy You, estreando no MCU).
O elenco (aí incluído Tenoch Huerta Mejía) é um dos trunfos do filme, que, como Pantera Negra, deixa a desejar nos efeitos visuais — às vezes, os voos de Namor não são tão fluidos, por exemplo. Por segurança, aposta-se mais nos combates corpo a corpo e na câmera lenta. Talvez Wakanda para Sempre careça da ação épica ou eletrizante procurada por fãs do gênero. Talvez os aspectos geopolíticos intriguem em demasia o espectador (seria spoiler entrar em detalhes). Talvez a duração — duas horas e 40 minutos — pudesse ser saudavelmente reduzida se cortassem a participação do agente Ross (Martin Freeman), que praticamente só se justifica por uma boa piada do final. Talvez alguém possa até reclamar de haver apenas uma cena pós-créditos — mas daí essa pessoa precisa urgentemente checar se ainda tem um coração.