A Mulher Rei (The Woman King, 2022) é um desses filmes que precisam e que merecem ser vistos. Dirigido por Gina Prince-Bythewood e protagonizado por Viola Davis, o drama de ação ambientado à época da escravização do povo da África pelos colonizadores europeus desembarca nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (22), impulsionado pela primeira visita de sua oscarizada estrela ao país, pelo sucesso de bilheteria nos Estados Unidos (arrecadou US$ 19 milhões no fim de semana de estreia, mais de 50% acima do esperado pelo estúdio produtor, o Sony Pictures) e pela boa recepção junto à crítica.
"O filme é uma espécie de retorno aos grandes e emocionantes épicos de guerreiros que costumavam ser muito comuns nos cinemas multiplex, com a reviravolta de que são as mulheres, e não os homens, comandando a ação", escreveu Lindsay Bahr para a Associated Press.
"Venha pelo derramamento de sangue, fique pela sororidade. Como Pantera Negra (2018) fez antes, A Mulher Rei nos imerge na cultura africana; só que, desta vez, muda o foco para as mulheres da vida real e prova, sem o fator brega, que sempre fomos guerreiras", disse Carys Anderson no site Consequence.
"É um épico histórico e afrocêntrico, feito por uma cineasta negra, estrelado por uma mulher negra de certa idade no papel de uma heroína de ação, contando um episódio que ficou de fora dos livros oficiais de História mundial e disputando um grande público", enumerou David Fear na revista Rolling Stone.
As comparações e observações são cabidas, embora se possa fazer uma ressalva ou um adendo aqui e ali. De fato, mulheres estão à frente e atrás das câmeras. No elenco principal, encabeçado por Viola Davis, ganhadora do Oscar de coadjuvante por Um Limite Entre Nós (2016), indicada na mesma categoria por Dúvida (2008) e concorrente à estatueta de melhor atriz por Histórias Cruzadas (2011) e A Voz Suprema do Blues (2020), também estão a britânica Lashana Lynch (de 007: Sem Tempo para Morrer), a sul-africana Thuso Mbedu e a ugandense Sheila Atim (ambas egressas da minissérie The Underground Railroad). Vale citar, ainda, as participações da estadunidense Jayme Lawson (que, na série The First Lady, encarnou a jovem Michelle Obama — Viola fez o papel na maturidade) e da premiada cantora Angélique Kidjo, nascida no Benim, país localizado na África Ocidental.
Diretora de A Vida Secreta das Abelhas (2008) e The Old Guard (2020), Gina Prince-Bythewood cercou-se de uma equipe feminina. O roteiro foi escrito por Dana Stevens a partir de uma história desenvolvida com a atriz e produtora Maria Bello. A direção de fotografia é assinada por Polly Morgan, de Um Lugar Silencioso: Parte II (2020), e a montagem ficou a cargo de Terilyn A. Shropshire, parceira nas obras anteriores da cineasta.
Em conversa com a jornalista Maju Coutinho no programa Fantástico, no domingo (18), Viola citou Coração Valente (1995), de Mel Gibson, Gladiador (2000), de Ridley Scott, e Apocalypto (2006), também de Gibson, como referenciais. A atriz também falou de sua preparação para os combates e fugas encenados em A Mulher Rei — "Com 56 anos (hoje, está com 57), tinha de correr a uma velocidade de 16 km/h, por exemplo". Na entrevista coletiva concedida na segunda-feira (19), contudo, ela refutou enquadrar o título como filme de ação:
— Seria reduzir demais. É um drama histórico.
A preocupação de não promover A Mulher Rei como apenas um entretenimento refletiu-se em outras declarações nos bate-papos com a imprensa. Para Viola, o filme celebra uma gente invisibilizada no cinema:
— É a chance de sermos vistas. Nós não estamos presentes em filmes de grandes cineastas. Não somos vistas na vida. Não olham nossa beleza, nossa cultura. Não somos vistas como valiosas. Como mulheres negras, especialmente mulheres negras de pele escura, estamos no fim da lista. Pode até ver personagens médicas ou advogadas sem nomes nos filmes. Você vê a pessoa na tela e depois fica procurando quem é, nos créditos, e não encontra. Estou farta disso.
A trama se passa em 1823, no então poderoso Reino do Daomé, onde hoje fica o Benim (mas as filmagens foram na África do Sul). Viola Davis interpreta Nanisca, general das Agojie (também conhecidas como Ahosi ou Mino), um histórico grupo de guerreiras que inspirou a guarda real da fictícia Wakanda, as Dora Milaje, em Pantera Negra. Na abertura do filme, elas libertam mulheres daomeanas que haviam sido sequestradas por traficantes de escravos de um império rival, o Oyó — personificado na imponente e aterradora figura de Oba Ade, papel do nigeriano Jimmy Odukoya.
A ação das Agojie obriga o rei Ghezo — encarnado pelo britânico de origem nigeriana John Boyega, o Finn da franquia Star Wars e vencedor de um Globo de Ouro por Vermelho, Branco e Azul, filme da antologia Small Axe (2020) — a se preparar para uma guerra contra os Oyó. Já o discurso de Nanisca incita o monarca a pensar sobre a principal fonte de riqueza de Daomé: a venda de escravos para mercadores europeus como o português Santo Ferreira (vivido pelo inglês Hero Fiennes Tiffin, da trilogia After), que circula pela costa africana na companhia de um brasileiro, Malik (o também inglês Jordan Bolger, que, ao contrário do seu colega, não se sai tão bem no trato do nosso idioma). Para a general, a escravidão era como um veneno a corromper todo o continente, enfraquecendo-o para a resistência contra os colonizadores.
Por causa de todo esse contexto, tanto o histórico (que já provocou contrapontos como o de Julian Lucas na revista The New Yorker: "A obra cruza a linha da ficção tolerável para a distorção cínica da história") quanto o da diversidade e da representatividade em Hollywood, e por causa da ligação com o Brasil — um país onde o racismo do dia a dia não deixa esquecer os tempos da escravidão —, A Mulher Rei é um filme que deveria ser visto. Mas este também é um filme que merece ser visto por conta de uma coleção de virtudes artísticas.
De cara, a direção de fotografia realça os tons terrosos dos cenários e dos figurinos, conferindo uma bela identidade visual. O roteiro é inteligente ao introduzir a personagem Nawi (Thuso Mbedu), expulsa de casa pelo pai após negar se casar com um homem rico, mais velho e totalmente abusivo. É por meio de sua trajetória que o filme vai equilibrar os aspectos históricos com os elementos melodramáticos — vale dizer que a parte romântica deixa a desejar, a ponto de parecer um corpo estranho (e despido) na trama. E é por meio do olhar da jovem que o espectador vai conhecer a doutrina das Agojie, o treinamento árduo e as convenções sociais — por exemplo, as guerreiras não podem ser encaradas diretamente pelo povo quando entram no palácio.
Lá, a impetuosa Nawi será acolhida pela brava Izogie (Lashana Lynch, em desempenho magnetizante), em uma relação que, em mais um acerto do script, espelha a de Nanisca com Amenza (Sheila Atim), confidente da general. Quando troca o diálogo pela ação, A Mulher Rei apresenta cenas intensas, mas que permitem apreciar o trabalho de coreografia nos (não raro sangrentos) combates corporais, energizados pela música composta por Terence Blanchard, indicado ao Oscar por Infiltrado na Klan (2018) e Destacamento Blood (2020).
Por fim, temos Viola Davis, sempre uma atração à parte. A atriz estadunidense tem uma capacidade incrível de dominar a cena e de transmitir uma gama de sentimentos apenas com o olhar ou com o movimento do corpo. Quando abre a boca, sua voz grave torna ainda mais fortes palavras como estas, endereçadas às Agojie antes da guerra:
— Quando chove, nossos ancestrais choram pela dor que sentimos nos cascos escuros dos navios, com destino a praias distantes. Quando o vento sopra, nossos ancestrais nos empurram para marchar para a batalha contra aqueles que nos escravizam! Quando troveja, nossos ancestrais exigem que arranquemos os grilhões da dúvida de nossas mentes e lutemos com coragem. Lutamos não só pelo hoje, mas pelo futuro!
É um discurso que Viola Davis ecoou no seu apelo para que o público assista a A Mulher Rei, em nome de um futuro ("Se não gerar dinheiro, isso significa que mulheres negras, sobretudo mulheres negras de pele escura, não podem protagonizar um sucesso mundial de bilheteria?") e na entrevista para Maju Coutinho, ao falar sobre a relação com o Brasil:
— Doze milhões de escravos vieram da África Ocidental para o Brasil, o Caribe e o sul dos Estados Unidos. O que eu sinto é uma conexão entre todos nós, entre as pessoas pretas. Nós estamos a apenas um porto de separação. Existe essa impressão de que somos distantes, mas, na realidade, não somos.