Às vezes, um filme é mais potente na ideia do que na execução. É o caso de Medida Provisória (2020), distopia sobre o racismo no Brasil que marca a estreia do ator baiano Lázaro Ramos como diretor de um longa-metragem de ficção, em cartaz a partir desta quinta-feira (14) nos cinemas.
Estrelado por Alfred Enoch (anglo-brasileiro que fez o bruxo Dino Thomas na franquia Harry Potter), Taís Araújo (esposa do agora também cineasta), Seu Jorge (protagonista de Marighella) e Adriana Esteves (no papel de vilã, é lógico), é uma adaptação da peça teatral Namíbia, Não! (2011). O espetáculo foi escrito por Aldri Anunciação — que interpretou um dos papéis principais nos palcos e está no elenco da versão cinematográfica — e dirigido pelo próprio Lázaro.
A trama está ambientada em um futuro próximo. O advogado Antônio (Alfred Enoch) decide processar o Estado brasileiro, solicitando uma indenização histórica à população negra por conta da escravidão e do racismo. A chamada reparação social custaria R$ 900 bilhões, um custo inconcebível para os cofres públicos.
O governo federal contra-ataca. Graças à ação de personagens como a burocrata Isabel (Adriana Esteves) e o recém-empossado ministro da Devolução, decreta-se uma medida provisória (MP) que obriga os cidadãos negros — ou melhor, cidadãos de "melanina acentuada" — a "voltarem" para a África. A ficção ecoa fatos: a cena que reconstitui a aprovação da MP no Congresso alude à votação do impeachment de Dilma Rousseff da Presidência, em 2016, e a polícia entra em campo para acelerar as expulsões — é o corpo negro sendo, como na realidade, o principal alvo da violência policial. O autoritarismo gera medo e caos, mas também protestos e um movimento de resistência, o Afrobunker (por onde circula o rapper Emicida, em participação especial).
Entre os resistentes, estão Antônio e seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), confinados em seu apartamento no Rio para evitar serem "devolvidos". Mas em algum momento eles terão de sair para tentar encontrar a esposa do advogado, a médica Capitu (Taís Araújo), supostamente desaparecida.
No teatro, a história era conduzida em clima de comédia absurda. No cinema, esse gênero é mesclado ao drama político e ao thriller de suspense. Não à toa, Lázaro, para sua primeira ficção — ele havia coassinado o documentário Bando, um Filme de (2018) —, convocou como diretor de fotografia Adrian Teijido, que trabalhou em episódios das séries policiais Narcos (2015-2017), Irmandade (2019) e Dom (2021) e no filme Marighella (2019), e como diretor de arte Tiago Marques, de Tropa de Elite 2 (2010). Já a edição ficou a cargo de Diana Vasconcellos, com larga experiência em títulos cômicos, desde aventuras dos Trapalhões, na virada dos anos 1980 para os 1990, até os recentes Tudo por um Pop Star (2018) e Cinderela Pop (2019).
Medida Provisória remete à obra do cineasta estadunidense Jordan Peele, que adota um tom sinistro, bizarro e satírico para discutir temas como a perpetuação da escravidão, o racismo estrutural, a normalização da agressão, as tentativas da sociedade de seu país de apagar e reinterpretar o próprio passado de exploração e violência, o preconceito disfarçado sob o mito de que na esfera cultural da atualidade os negros têm algum tipo de vantagem e a diferença brutal entre brancos e negros nas estatísticas policiais. O próprio Lázaro Ramos, em entrevista de divulgação, admite a inspiração:
— Quando Jordan Peele veio com Corra! (2017), eu estava no meio do processo com meu filme, então eu entendi que havia outra maneira para contar a história. Não quero comparar com os filmes que ele faz, mas acho que podem pertencer à mesma família.
O primo brasileiro de Corra! e Nós (2019) tem virtudes inegáveis, a começar pela abordagem do racismo com uma pegada pop e universal — evidenciada tanto na mistura de gêneros quanto na escolha do elenco (Seu Jorge é um nome reconhecido mundialmente, e Lázaro disse que escolheu Alfred Enoch pensando em "abrir caminho para o filme fora do Brasil"). É importante popularizar os temas da desigualdade racial e dos riscos da polarização e do extremismo, e a extrapolação serve como um alerta à luta contra o racismo estrutural. Nesse sentido, a expatriação dos afrodescendentes é inicialmente voluntária — como ocorre em relação às cotas universitárias, brancos querem aproveitar a oportunidade —, e a comunidade negra zomba desses planos que parecem piada, até perceber a gravidade da coisa.
Mas toda moeda tem dois lados. O elenco revela-se um ponto fraco. Em raro papel de protagonista, Enoch não faz mágica — é de se lamentar a decisão de Lázaro Ramos de não querer dirigir e atuar. Em outra opção que cobra seu preço, Lázaro deu um papel de relativa importância (Elenita) para Diva Guimarães, alfabetizadora e professora de educação física aposentada que foi sensação na Festa Literária de Paraty (Flip) de 2017. A homenagem é válida, mas o amadorismo da atuação chama a atenção. Seu Jorge dosa densidade e humor, só que parece menos um personagem do que uma charge ambulante (embora algumas de suas tiradas sejam de fato ótimas, como esta sobre identidade: "Se parece preto, é preto"). Adriana Esteves fica refém do texto, e Taís Araújo acaba subaproveitada depois que Medida Provisória deriva para um filme de ação.
Aliás, a transição de gêneros não é, por si só, um problema — vide o oscarizado Parasita (2019), que vai da comédia farsesca ao drama com crítica social, passando pelo thriller policial e flertando com o terror urbano. O que pesa negativamente em Medida Provisória é a oscilação de gêneros, algo que uma declaração do diretor, ainda que anedótica, permite prenunciar: "Foi um trabalho longo que durou, pelo menos, sete anos. Foi de muita pesquisa, de muitas idas e vindas, de muita consultoria, que chegou até a hora da edição. No final, eu tinha 29 versões do filme, e eu não sei como a editora teve paciência comigo, porque todo dia eu mudava de ideia".
Talvez em alguma dessas versões Lázaro tenha se preocupado em dar contornos mais realistas à ameaça plausível de Medida Provisória. Gasta-se tempo nas partes superficiais, como o confinamento de Antônio e André no apartamento ou a exposição dos atos de repressão e resistência, e fala-se pouco das consequências mais profundas da chamada "devolução". O que seria do Brasil sem os negros é uma pergunta na qual o filme não avança, assim como não propõe uma discussão em nível político-econômico, que dirá global: qual seria o impacto do desembarque de mais de 100 milhões de cidadãos com "melanina acentuada" no continente africano? Claro, este é um filme que Medida Provisória não pretende ser, mas essa ambição poderia torná-lo mais poderoso.