Há exatos 20 anos, os brasileiros fãs de Harry Potter lotaram os cinemas para assistir à estreia do primeiro filme baseado nos livros do personagem criado pela escritora J.K. Rowling. Como muitos desses espectadores tinham de estar acompanhados pelos pais ou responsáveis, o mercado foi previdente: Harry Potter e a Pedra Filosofal (hoje disponível em HBO Max, Google Play e, para aluguel, YouTube e Amazon Prime Video) entrou em cartaz com o número então recorde de 476 cópias, superando a marca de 340 firmada em 1999 por Star Wars: Episódio 1 — A Ameaça Fantasma.
Quebrar recordes é um dos truques mais frequentes do bruxinho órfão e corajoso. Os sete romances publicado entre 1997 e 2007 venderam mais de 500 milhões de exemplares, tornando Harry Potter a série campeã nesse quesito. O capítulo final, As Relíquias da Morte, é reconhecido pelo Guinness Book como o de maior êxito comercial em 24 horas, com 15 milhões de volumes.
A chegada ao cinema não foi diferente. Nos Estados Unidos, Harry Potter e a Pedra Filosofal arrecadou US$ 93,5 milhões no seu fim de semana de estreia, ultrapassando em muito os US$ 72,1 milhões de Jurassic Park: O Mundo Perdido (1997). No Brasil, estabeleceu o recorde de 796.587 espectadores entre a primeira sexta-feira de exibição e o domingo.
Eram outros tempos: hoje essas marcas são irrisórias diante do US$ 1,2 bilhão faturado nos EUA e dos 5,5 milhões de brasileiros atraídos por Vingadores: Ultimato (2019). Mas a quantidade de filmes (10, contando os dois Animais Fantásticos e Onde Habitam), a consistência artística e a combinação de fidelidade e renovação do público fizeram de Harry Potter a terceira franquia no topo das bilheterias. Com mais de US$ 9,2 bilhões, só fica abaixo do Universo Cinematográfico Marvel (quase US$ 24 bilhões com 26 longas-metragens) e da saga Star Wars (US$ 10,3 bilhões e 12 títulos).
Naquele novembro de 2001, uma sessão de pré-estreia para convidados realizada em São Paulo e acompanhada por ZH dava conta do culto em torno de Harry Potter que o cinema ampliaria. A repórter Cris Gutkoski descreveu assim o ambiente: "Crianças e adultos sentados até nas escadas, paralisados de tanta expectativa, travando diálogos compreensíveis somente para iniciados na história, falando de quadribol, pomos de ouro, sapos de chocolate, dementadores, transfiguração e arte das trevas. Adolescentes explicavam com autoridade para jornalistas as regras da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. (...) Começa a projeção. Um silêncio abissal, daqueles que antecedem os grandes eventos, desprende-se da plateia ao surgirem na tela os primeiros atores que dão corpo e voz aos personagens já populares em 46 idiomas (hoje já são 80). Num cenário sombrio, como serão tantos do filme, Alvo Dumbledore, o diretor da Escola, um dos maiores mágicos do planeta, está na rua dos Alfeneiros, aguardando a chegada do grandalhão Hagrid com o bebê Harry, que acaba de perder os pais e será entregue à guarda dos tios. Na parede, a sombra de um felino transfigura-se numa mulher de vestido longo e chapéu pontudo, a professora Minerva McGonagall. Pronto. A sutileza, o capricho, a fidelidade ao espírito do livro contidos nessa cena introduzem os fãs e os neófitos naquele mundo onde quem sobrevive sem a praticidade dos feitiços para ser transportado de um lugar a outro (ou mesmo para lavar a louça) é chamado de 'trouxa'".
De trouxa, Cris Gutkoski continuou, o diretor e produtor Chris Columbus, realizador de comédias populares como Esqueceram de Mim (1990) e Uma Babá Quase Perfeita (1993), não tinha nada. Cercou-se de parceiros talentosos: o roteirista Steve Kloves disputara o Oscar pelo sensível Garotos Incríveis (2000), o diretor de fotografia John Seale ganhara a estatueta com O Paciente Inglês (1996), drama que também premiara o diretor de arte Stuart Craig e a decoradora de cenários Stephenie McMillan. Os dois acabariam indicados por Harry Potter e a Pedra Filosofal e por outros três segmentos da franquia original. E, claro, numa história com vassouras voadoras, fantasmas, centauros, visgos do diabo e cachorro com três cabeças, era preciso um mago dos efeitos visuais: Robert Legato, oscarizado por Titanic (1997) e concorrente por Apollo 13 (1995). Depois, ele integraria os vencedores times de dois filmes com protagonistas mirins: A Invenção de Hugo Cabret (2011) e Mogli, o Menino Lobo (2016).
Embora a saga Harry Potter nunca tenha disputado um Oscar nas categorias de interpretação, A Pedra Filosofal já deixava evidente um de seus grandes acertos: a escolha do elenco. Há alquimia entre Daniel Radcliffe (o tímido Harry), Emma Watson (a estudiosa e espoleta Hermione Granger) e Rupert Grint (o ruivo de origem humilde Rony Weasley), cúmplices nas aventuras que subvertem o bom comportamento na escola para impedir o maligno Voldemort de roubar a pedra da vida eterna. Ao longo de 10 anos, o trio contracenou com uma seleção encantadora de atores e atrizes britânicos e irlandeses: Maggie Smith (que interpretou Minerva McGonagall), Gary Oldman (Sirius Black), Emma Thompson (Sybill Trelawney), Ralph Fiennes (Voldemort), Julie Walters (Molly Weasley), Michael Gambon (Alvo Dumbledore), Helena Bonham Carter (Bellatrix Lestrange), Robbie Coltrane (Hagrid), Imelda Staunton (Dolores Umbridge), Brendan Gleeson (Alastor Moody)...
No dia 1º de janeiro de 2022, muitos desses nomes vão estrelar um programa especial do HBO Max para marcar os 20 anos de lançamento do primeiro filme. A celebração terá algumas ausências sentidas. De lá para cá, pelo menos 13 artistas da saga morreram, incluindo Richard Harris (o professor Dumbledore em A Pedra Filosofal e A Câmara Secreta), em 2002, Richard Griffiths (o tio Vernon), em 2013, Alan Rickman (Severo Snape), em 2016, e John Hurt (Garrick Ollivander), em 2017.
Outra falta gritante deve ser a da própria criadora de Harry Potter. Segundo a imprensa dos Estados Unidos, J.K. Rowling não foi convidada para Retorno a Hogwarts — e, de fato, a escritora escocesa não aparece na lista que encerra o trailer da atração. Especula-se que a autora tenha sido vetada por conta de suas declarações transfóbicas. Ela afirma que "mulheres trans não são mulheres verdadeiras" e diz entender gênero como um "fato", ou seja: o que vale é o sexo biológico, se você nasceu menino ou menina, e não a identidade sexual. Para aumentar o fogo, no sexto livro da série policial Cormoran Strike, que Rowling assina sob o pseudônimo Robert Galbraith — quase homônimo do psiquiatra estadunidense Robert Galbraith Heath, que na década de 1950 defendia a "conversão sexual" de homossexuais —, intitulado Sangue Revolto (2020), há um travesti assassino em série.
As posições da romancista de 56 anos provocaram críticas até dos atores que devem a seu personagem o estrelato. Em junho de 2020, Daniel Radcliffe, hoje com 32 anos, se manifestou: "Devemos dar mais apoio às pessoas transexuais e não-binárias em vez de invalidar suas identidades e causar-lhes mais danos". Aludindo a uma contradição entre o discurso de Rowling e o discurso da obra, o ator afirmou que "se esses livros ensinaram que amor é a maior força do universo, capaz de superar qualquer coisa; se eles ensinaram que a força é encontrada na diversidade, e que ideias dogmáticas de pureza levam a opressão de grupos vulneráveis; se vocês acreditam que um personagem em particular é trans, não-binário, ou tem gênero fluido, ou é gay ou bissexual; se você encontrou qualquer coisa nessas histórias que ressoou em você e ajudou em qualquer momento de sua vida — então isso é entre você e o livro que você leu, e isso é sagrado". Emma Watson, 31, fez coro: "Pessoas trans são quem dizem ser e merecem viver suas vidas sem serem constantemente questionadas".
Um indicativo do distanciamento que hoje existe entre Rowling e a turma envolvida nos filmes de Harry Potter é a frase que acompanha as imagens do trailer de Retorno a Hogwarts:
— Todos temos luz e trevas dentro de nós. O que importa de verdade é o lado que escolhemos usar. Isso mostra quem realmente somos.