Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021), que estreia nesta quinta-feira (18) nos cinemas de Porto Alegre, é o sétimo longa-metragem de ficção do inglês Edgar Wright, 47 anos, um diretor que costuma arrancar elogios dos críticos graças à combinação de violência com comicidade, cortes rápidos na edição, valorização da trilha sonora — cuidadosamente escolhida antes mesmo das filmagens, para ação e música estarem sincronizadas — e uma coleção infindável de referências. Em outras palavras, gabarita em estilo, mas não raro fica devendo em substância. No seu currículo, estão os divertidos Todo Mundo Quase Morto (2004) e Chumbo Grosso (2007), que parodiam, respectivamente, os filmes de zumbi e os filmes policiais, a frenética adaptação dos quadrinhos Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010) e o superestimado Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, 2017), homenagem ao arquétipo do cavaleiro solitário e às aventuras embaladas por perseguições automobilísticas.
Em maior ou menor peso, os elementos característicos de Wright aparecem em Noite Passada em Soho, embora definitivamente, e como o título já sugere, este seja seu filme menos solar. É, também, a primeira vez em que o diretor trabalha com uma roteirista — Krysty Wilson-Cairns, indicada ao Oscar por 1917 (2019), escrito em parceria com Sam Mendes — e tem uma mulher como protagonista. Trata-se da jovem Eloise Turner, a Ellie, uma aspirante a estilista interpretada pela neozelandesa Thomasin McKenzie (vista em Jojo Rabbit e em Tempo).
Antes de prosseguir, vale reforçar o alerta: este texto traz muitos SPOILERS, essenciais para justificar o título dado à coluna.
Na sequência de abertura, uma avalanche sonora e visual mostra a fascinação de Ellie pela década de 1960, dos discos de vinil de cantoras como Cilla Black (1943-2015) e Dusty Springfield (1939-1999) ao cartaz do filme Bonequinha de Luxo (1961). No meio da nostalgia sessentista, Wright insere uma citação aos anos 1980, brincando com as iniciais — E.T. — da garota. Parece apenas um detalhe, mas, em retrospecto, serve como indicativo de que os personagens de Noite Passada em Soho estão menos para gente de carne e osso do que para manequins pelo meio dos quais o diretor vai fazer desfilar suas influências. A principal delas é o giallo, subgênero italiano do suspense e do terror que teve como expoentes os cineastas Mario Bava (1914-1980), de Seis Mulheres para o Assassino (1964), Lucio Fulci (1927-1996), de O Estripador de Nova York (1983), e Dario Argento, 81 anos, de Suspiria (1977). Entre as suas marcas, estavam um protagonista que precisa lidar com um trauma, a presença de um assassino serial que geralmente emprega faca, tesoura ou outro objeto cortante, a farta exposição de sangue, cenários com espelhos, a obsessão erótica, a fantasia que altera a percepção da realidade e as cenas de alucinação.
Praticamente todo esse catálogo será colocado em prática a partir do momento em que Ellie — traumatizada pelo suicídio da mãe quando a filha era criança — muda-se de uma cidadezinha da Inglaterra para Londres, onde vai estudar em uma faculdade de moda no boêmio bairro Soho. Antes de ingressarmos no parque de diversões masturbatório de Edgar Wright, porém, temos de encarar o clichê da garota interiorana que vira alvo da zoação das colegas de aula, como Jocasta (Synnove Karlsen). São os últimos instantes supostamente cômicos: daqui para frente, a barra vai pesar.
E daqui para frente os spoilers serão mais pesados.
No Soho, a protagonista começa a ter sonhos vívidos com uma aspirante a cantora dos anos 1960, Sandie, personagem encarnada por Anya Taylor-Joy, estrela da minissérie O Gambito da Rainha (2020). Por vezes, é como se Ellie fosse transportada para a Londres de seis décadas atrás, virando uma testemunha em segredo das aventuras e atribulações da outra; em outras, é como se ela própria fosse Sandie.
Ellie logo percebe os perigos da idealização do passado, um tema interessante que é reforçado pelo uso, mais adiante, da sarcástica canção Happy House (1980), da banda Siouxsie and the Banshees, mas que, contraditoriamente, termina soterrado pela celebração sessentista empreendida pelo diretor inglês — a ponto de a protagonista, mesmo depois de todo seu sofrimento, continuar se inspirando nos anos 1960 para criar a coleção que apresenta ao final do filme.
Só que esse não é o maior problema de Noite Passada em Soho. Em nome de uma virada na trama, Edgar Wright toma um caminho que, além de soar pouco plausível, revela-se ultrajante.
É a última chance para parar de ler se você quiser evitar um grande spoiler.
Nas visões de Ellie, Sandie precisou interromper os sonhos de sucesso musical quando foi coagida por seu agente, Jack (Matt Smith, o jovem príncipe Philip na série The Crown), a se prostituir. Nas visões de Ellie, Sandie acabou sendo assassinada pelo cafetão, e fantasmas vestidos em ternos cinza nos lembram do caráter predatório que os homens podem ter em relação às mulheres. A protagonista tenta levar o caso à polícia, ninguém acredita nela — afinal, no universo de Noite Passada em Soho quase todas as mulheres são "loucas" (ou perversas) —, então resolve investigar por conta própria o homicídio.
Mas acontece que Sandie não morreu. Na verdade, matou Jack. Mais do que isso: tornou-se uma assassina em série de seus clientes. Sabe-se lá como, seus crimes — muitos, a julgar pelo número de fantasmas que assombram Ellie — nunca foram devidamente investigados, e ela nunca foi presa. Envelheceu e virou a dona da casa onde a protagonista se hospedou, a senhora Collins. O papel é vivido por Diana Rigg, que estrelou um famoso seriado britânico de espionagem da década de 1960, Os Vingadores, fez a Olenna Tyrell em Game of Thrones e faleceu em setembro de 2020, aos 82 anos — mesmo octogenária, Sandie ainda lida bem com lâminas e consegue ser mais ágil do que um jovem.
A reviravolta é revoltante. Se por um lado retoma a nostalgia como ameaça, um tema pertinente, por outro foge da realidade ao investir em uma serial killer — segundo estatísticas estadunidenses, 85% são homens. Até poderíamos dar o desconto da ficção, mas Noite Passada no Soho gasta boa parte do tempo fingindo ser uma trama com efetivo protagonismo feminino, até que Edgar Wright assume de vez o centro do palco com a pegadinha aplicada no espectador. A revelação sobre o passado de Sandie transforma a vítima da história em um monstro, transforma uma mulher que, no fim das contas, sofreu violência sexual na vilã do filme. E os fantasmas engravatados, até então vistos como sujeitos repugnantes pelos olhos das duas personagens, aparecem como coitadinhos, pedindo "salve-nos, salve-nos!".